A morte do cururu
Eis, pois, o fim da longa e melancólica agonia, a morte anunciada. Não apenas a de Abel Bueno, esse homem maravilhoso que carregava, no sangue e na alma, o mais puro e límpido piracicabanismo. Mas, também, a morte anunciada do cururu, um dos patrimônios culturais mais preciosos de uma Piracicaba que, nas últimas décadas, vem cometendo ou suicídio cultural ou assassínio premeditado de suas raízes.
A estupidez e a ignorância de uma falsa elite cultural piracicabana vêm, sistematicamente, destruindo o que Piracicaba tem de mais diferenciado e singular em relação a outras cidades paulistas: um estilo de vida, o jeito de ser, a linguagem, as tradições, também uma cozinha que nos foi deixada por negros e índios. Num tempo em que, no mundo todo, valorizam-se as origens e as raízes, recuperam-se valores perdidos, retomam-se princípios, Piracicaba vê a destruição acelerada de sua história e de seu destino, que governantes pragmáticos tentam substituir por realizações e cultivos também pragmáticos.
Abel Bueno foi o último dos nossos cururueiros, herdeiro de uma tradição mais do que centenária que os maiores folcloristas do Brasil souberam reverenciar e admirar. Obras de Alceu Maynard de Araújo, de João Chiarini, teses e grandes publicações debruçaram-se sobre as belezas do cururu e o extraordinário dom de curureiros para a cantoria que mantinha a tradição oral e divulgava e promovia valores de uma cultura especialíssima. Herdeiro direto de Nhô Serra, seu irmão, Abel Bueno lutou até o fim em defesa dessa cultura popular, entristecendo-se por ter consciência de ser, ele próprio, o último guardião do cururu.
Certa elite arrogante e tomada de pedantismo nunca soube, na verdade, o que é o cururu. Pelo contrário, menosprezou-o. No entanto, em passado ainda recente, os salões dos grandes empresários de Piracicaba, dos poderosos industriais – homens simples mas de grande sensibilidade – recebiam o cururu e os cururueiros como astros de primeira grandeza de uma arte inimitável. Os salões, entre outros, de Mário Dedini, de Humberto D´Abronzo, de Dovílio Ometto, de Antônio Romano, da família Sabino abriam-se, com galhardia, para receber – como se fossem os Frank Sinatra caipiras, os Roberto Carlos de viola – os inesquecíveis Parafuso, Pedro Chiquito, Nhô Serra, Sico Moreita, apenas para citar alguns deles.
Nos anais da USP e de outras universidades, há estudos especialíssimos sobre o cururu que tinha o seu último grande reduto em Piracicaba. No entanto, pelo menos nos últimos 20 anos, a administração pública piracicabana – que mantém ficções de secretarias culturais – ignorou esse tesouro, permitindo fosse lenta a sua morte, apesar dos apelos, da luta solitária e heróica de Abel Bueno, o último guardião. Com toda a certeza, depois de Salgot Castillon e Cássio Padovani, foi João Herrmann Neto o último a valorizar essa cultura popular com ênfase que, às elites pensantes, pareceu uma quase vergonhosa ação demagógica e populista. Louve-se, também, a sensibilidade de José Machado que, quando prefeito, abriu espaços para essa cultura caipiracicabana, sem que, no entanto, o concreto houvesse acontecido.
Na verdade, os culpados por essa morte anunciada somos nós mesmos, que nos deixamos seduzir por lantejoulas idiotas de modismos culturais, repudiando o nosso próprio umbigo, cegos diante de nossa maravilhosa história que, na verdade, é a única verdadeira trilha a nos conduzir a um futuro sólido e sustentável. A PROVÍNCIA tem a consciência tranqüila de estar fazendo a sua parte. Mas isso não nos impede de lastimar, de chorar, de nos angustiarmos diante da morte de valores essenciais que devem ser balizas de nossa juventude. Se não conhecemos e preservamos a própria aldeia, como haveremos de pretender entender o mundo?
Abel Bueno, último guardião do cururu, levou embora o próprio cururu. Piracicaba perdeu. E perderá mais, se continuarmos nessa lassidão moral e nessa covardia cívica que permitem a ascensão dos oportunistas e a conseqüente morte dos sábios e guardiães de nossa terra. Bom dia.
Olá Cecílio, esteja sempre bem. Chorosa não de infelicidade, mas de saudade,releio essas suas “apalavrinhações” e nelas sinto presenças e ausências que muito me são caras, Escrevo para agradecer pelo que é, demonstra e ainda faz… Um abraço acarinhado e desejoso que nossa cultura local esteja sempre em evidência, não para os demagogos das tradições, mas para os verdadeiros fazedores e para os que ainda reverenciam com veemência aquilo que chamamos riqueza cultural de raiz de nossa terra…
Como voce, e outros, Abel tem seu significado e sobreviverá se nutrirmos nossa memória afetiva efetivamente