A náusea

NáuseaNa verdade, sinto-me traído perante tudo o que aprendi a respeito da importância da imprensa para as liberdades democráticas, convicção que que vivi e ainda vivo. Olho para os lados e vejo um deserto cada vez mais amplo, com pequenos oásis onde se pode beber água pura. A deterioração dos valores da imprensa é de tal forma galopante que, de repente, é como se tudo o que houve de grandioso antes não mais valesse agora. E isso me reporta, cada vez mais insistentemente, à “náusea sartreana”, à má-fé, a conceitos do Existencialismo que pensei estivessem sepultados. Não estão. E a náusea existe.

Não sei se pior ou melhormente ainda, a náusea atual reaviva e reafirma a convicção de Sartre de o homem, ontologicamente, estar condenado a ser livre e responsável. Essa condenação é uma perigosa armadilha. Pois, sob o peso da responsabilidade, o homem pode fugir à sua liberdade exatamente quando mais insiste em proclamá-la. É a má-fé, o falso uso da liberdade para defendê-la. A chamada grande imprensa brasileira vive a questão sartreana de existência e essência. É a essência que precede a existência do jornalismo; é a existência que precede a essência jornalística? Quando não se sabe ou se foge à liberdade responsável, cai-se na má-fé.

A consciência jornalística também parece estar vivendo a característica principal que Sartre identifica na consciência individual: ou está “cheia de nada” ou “vazia de tudo”. E a má fé se vai tornando cada vez mais evidente, num processo de dissimulação e simulação, no uso de meias verdades e de sonegação de informações fundamentais. Ora, – usando da minha condição de veteraníssimo jornalista, nos meus exaustivos 54 anos de atividades – tenho que insistir e repetir à exaustão: a imprensa tem, ao mesmo tempo, o direito e a obrigação de optar por candidatos, de fazer suas escolhas ideológicas e até mesmo partidárias. A única e necessária condição, no entanto, é a da honestidade em declarar seus princípios e escolhas. A má-fé está em fazer falso uso da liberdade sob o pretexto de defendê-la.

No livro “A Náusea”, obra monumental de Sartre, o personagem principal, Roquentin, usa da má-fé, manipulando acontecimentos para tentar construir sua história. Ele não fazia acontecer, mas tentava mudar o acontecido adequando-o às suas vontades e intenções. Roquentin, negando-se a si mesmo, usava da má-fé para fugir à sua realidade, criando personagens e querendo ser igual a elas mesmas. A imprensa brasileira está agindo da mesma forma: amoldando o acontecido conforme suas conveniências e não revelando o acontecimento de maneira verdadeira e honesta.

Não se diga que o jornalismo e a imprensa tenham sido, antes ou sempre, puros, absolutamente decentes. Não. Como parte de sociedades imperfeitas, o jornalismo sempre foi feito de imperfeições, terreno onde imperaram também malandros e oportunistas. Quando Assis Chateaubriand criou o seu grande império de comunicação – maior ainda do que é a Globo hoje – as mazelas eram nauseabundas de tão evidentes. Chateaubriand manipulava o acontecido, sonegava informações, negociava a notícia, queria fazer acontecer conforme seus interesses. E se tornou lendário o exemplo que se dava de sua pusilanimidade numa conversa fictícia que Chatô teria mantido com o seu principal jornalista, o brilhante mas pouco confiável Davi Nasser. O patrão, Chatô, teria pedido que o empregado, Davi, escrevesse sobre Jesus Cristo. Davi Nasser teria, então, perguntado: “A favor ou contra?”

Se sempre houve malandragens, havia, no entanto, um mínimo de pudor, uma sinceridade maior na revelação de objetivos e de princípios. Júlio de Mesquita Filho, notável e decente diretor do “Estadão”, era um conservador enraigado, defensor intransigente do capitalismo. Em sua redação, ele agasalhava uma maioria de jornalistas comunistas e socialistas. Quando questionado sobre esse fato, Mesquita respondeu: “São os melhores profissionais e, em meu jornal, a opinião é minha.” Ou seja: jornais sempre tiveram a “opinião do dono”. E isso é honesto e legítimo, desde que declarado e desde que não se manipule o acontecido para enganar o leitor.

A chamada grande imprensa brasileira, em relação ao presidente Lula, está perdendo quase toda a compostura, num concerto bem orquestrado de falácias, de meias verdades, de sonegação de informações, de manipulação dos fatos. Como jornais e emissoras de tevê têm seus próprios donos, seria legítimo perguntar-se se são deles mesmos as vozes soturnas que criam esse odor nauseabundo que nos chega de grande parte da imprensa. A quem, ela está servindo? Por que não se declara abertamente, para o leitor médio saber orientar-se, posicionar-se?

O grande problema não está na falta de informação, mas na má informação. E o leitor de jornal e revistas está sendo mal informado, diante da manipulação do acontecido. A vida, porém, é maior do que a imprensa. E, por isso, enquanto esta inventa o acontecido, as coisas estão e continuam acontecendo. O que o presidente Lula conseguiu, em nome da paz, no Irã, é um momento notável para a humanidade, apesar do descontentamento de Estados Unidos e aliados de Israel. Estes querem o domínio de outra nação, não o equilíbrio mundial. Lula é protagonista principal nessa nova história. E: o Brasil se transformou num dos líderes do cenário político e econômico mundiais. Aconteceu. Apesar do acontecido inventado por essa imprensa que tateia em penumbras.

Por que não nos orgulharmos deste novo e grande país? Que masoquismo infantil é esse? Ou há interesses tão ocultos que não podem ser revelados? Esse novo e péssimo jornalismo é perigoso, pois carrega um vírus que produz contágios. Bom dia.

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