A nossa Piaff

picture (89)Cada lugar tem a Edith Piaff que merece. São Paulo, tivemos a nossa. Não, certamente, no mesmo privilégio de voz e nem, talvez, na capacidade interpretativa. Mas tivemo-la, na dimensão trágica de vida, na dramaticidade de sua trajetória artística, na via-crucis sentimental e amorosa. E na postura “à gauche” diante do mundo. Entre ingênua e malandra, entre estrela e grão de areia, entre heroína e bandida – mas, sempre, vítima de si mesma e de sua arte – ela foi Isaurinha Garcia. E penso, novamente, nela, agora que o Brasil também revive Maysa.

Confesso ainda não saber – e de ter desistido de entender – o que foram aquelas duas décadas enfeitiçadas, as de 1950 e 1960. Não apenas no Brasil, mas no mundo, como se um vento de bonança tivesse varrido os quadrantes. Ou que tudo tivesse acontecido antes, quando os deuses reuniram homens e mulheres humildes, fazendo-os gerar – depois de o ventre da Europa vomitar Hitler – filhos que embelezaram e enriqueceram o mundo. Pois tudo aconteceu. E em todos os lugares. Frank Sinatra lá; Agostinho dos Santos, aqui; Kennedy lá; Juscelino, aqui. Piaff lá; Isaurinha, aqui. E Maysa. A bossa nova, Tom Jobim; blues e souls; Marilyn e Brigitte Bardot; De Gaulle e Churchill. Para tudo se esvair em Nixon, Bush e Blair. Ou em “rap” e axé.

Há alguns anos, o nosso maestro Ernst Mahle, despedindo-se de um momento de sua vida artística, concedeu-nos uma entrevista enfatizando uma de suas certezas: a música como educação para a paz, como modelagem da alma para a cordialidade. E o ruído e os barulhos como estimulantes para todas as formas de violência e brutalidade. Os canhões troam para a morte; violinos soam para a doçura da vida.

Piracicaba está à beira desse colapso que já alcançou as grandes metrópoles há algum tempo. Aqui, começamos a matar a arte em prol do caos; trocamos a civilidade pela desordem. . Os paulistanos, vivendo o cotidiano de violência e aflição de São Paulo, sabem que embriaguez de arte e de beleza é privilégio de apenas alguns momentos, quando existem.. E de poucos. As grandes capitais parecem destinadas a ser locais de passagem, não de se viver. Quem pode escapa delas. E quem pode procura-as, de passagem, para, pelo menos, um rápido banho de cultura e de arte.

Admito não sejam, as metrópoles – mesmo as que buscam humanizar-se – lugares de ficar, não devem ser. Mas tornam-se, em meu entender, lugares para onde ir. O meu céu na terra, jardim de delícias, é Piracicaba, lugar de ficar. E, daqui, eu saio para ver o grande mundo. Saio e volto correndo. Acho, até, que de inveja de Proust, refugiando-se num apartamento para escrever “À la recherche…”, saindo apenas para ver a noite de Paris que já se transformava, sua aldeia tornando-se metrópole. Viver como o cuco – botando a cabeça para fora e voltando – é bom.

Nessas coisas, tenho lá, eu, pensado a partir da minissérie sobre Maysa. Penso nos grandes espetáculos do Canecão, do Ópera, no Tuca, até mesmo nos recentes shows promovidos pelo renovado velho bar Brahma. Mas falar de Maysa, de Isaurinha Garcia, de Claudete Soares, de Tito Madi, de Ivon Cury, dos espetáculos de Bibi Ferreira e de Tônia Carrero, soa, agora, como heresia. Só se pode escrever disso para nós mesmos, os que amávamos os Beatles e os Rollings Stones. Ouvir Isaurinha era ver estrelas surgindo quando ela chegava ao fim. Quem a viu e ouviu não se esqueceu jamais. Eu gostaria de escrever que Isaurinha Garcia foi a Piaff que merecemos. Até mesmo na sofrida vida pessoal. Mas não sei quem entenderia isso. Ou foi Maysa, a nossa Piaff? Pensar nisso é um contraponto a tempos cruéis. Mas dói na alma. Bom dia.

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