A própria burrice

Há algumas coisas que costumam escandalizar o tal mundo dos intelectuais onde se criam tabus e deles não se abre mão. É pecado mortal, por exemplo, não gostar de Guimarães Rosa. Há muitos anos, escrevi sobre isso e foi como se trovões dos céus daquele Olímpo dos tais intelectuais — estourassem em meus ouvidos. Chamaram-me de burro, de ignorante, não me lembro mais de quê, mas tenho a impressão de que até a minha mãe acabou entrando no meio.

Ora, eu nunca disse que não gostava do Guimarães Rosa, pois há pelo menos um motivo que me impede de fazê-lo: eu nunca consegui lê-lo, nunca entendi Guimarães Rosa. Foi a mesma coisa com outro fetiche da intelectual idade, o “Ulisses”, do Joyce. Também não consegui ler, embora tivesse tentado várias vezes.

Assumo de imediato que a culpa e a burrice eram minhas, pois fui eu que não entendi o que Guimarães Rosa e James Joyce escreveram. Assumi. Mas vou confessar uma coisa: voltei a tentar, à espera de que, com a passagem dos anos, minha cabeça tivesse um pouco mais de abertura, de compreensão.(Costumo ler três ou quatro livros ao mesmo tempo, conforme o estado de espírito. Por isso, tenho um cantinho onde ficam amontoados os livros “que estão em fase de leitura”.)

Expliquei isso porque, há uns seis meses, readquiri coragem, me enchi de humildade, coloquei o “Grande Sertão” no pacote. E lá me fui, tentando e tentando. Durante uns dois meses, fiquei abrindo o livro, lendo umas 20 páginas, fechando, voltando a ler. Sabem o que aconteceu? Desisti.

Assumo que sou definitivamente burro e não consigo mesmo ler Guimarães Rosa, os intelectuais de plantão que me perdoem. Pois bem. Eu estava, há poucos dias, batendo papo com um conhecido escritor — que respeito e admiro — e ele, para minha surpresa e alegria, fez-me uma confissão. Falando baixinho: “Eu nunca consegui ler Guimarães Rosa … ” Quase o abracei, exultante. Pois lá estava um companheiro meu de ignorância, talvez o único – além de mim, é óbvio – que teve essa suprema coragem, essa audácia quase infinita de confessar que não entende o Rosa.

Feliz, falei do “Ulisses”, o que ele achava. Aquele meu amigo olhou de lado, como se para ver se não havia ninguém por perto, falou de novo, também em confissão: “Acho que não fui além de dez páginas, não entendi nada, nunca mais peguei o livro. Mas, quando me perguntam, eu digo que li e gostei.”

Isso me lembra de meus velhos tempos de juventude comunista. Todos nós falávamos de Marx, mas ninguém havia lido. O mundo e a vida são assim. Mas, quando se vai envelhecendo, se adquire coragem de confessar a própria burrice. Felizmente, para meu consolo, encontrei alguém com a coragem de dizer que também não conseguiu ler Guimarães Rosa. Ufa! Levei 30 anos para conhecer outro burro como eu. E bom dia.

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