A santinha e Pasárgada

Já escrevi muito sobre Pasárgada, a minha Pasárgada, onde eu era amigo do rei. Era para lá onde eu me ia, ora quando o rei me chamava, ora quando o cansaço batia. Então, as palavras de Manuel Bandeira – não no corpo, mas na alma – diziam-me do caminho: “Vou-me embora para Pasárgada/ Lá sou amigo do rei./ Lá tenho a mulher que eu quero/ na cama que escolherei./Vou-me embora pra Pasárgada.”

Volto a escrever sobre o pedacinho do céu. Pois, na manhã chuvosa e morna, lembrei-me dele ao ver um cipreste todo molhado e, como sombra, um sorriso que se abria em algum escondido da memória. Era o de Madre Rachel, a guardiã de Pasárgada, um anjo que pousou na vida das pessoas. De repente, Madre Rachel Carnevalli aparecia como que sorrindo e acenando por trás do cipreste molhado. E entendi ser inadiável a minha necessidade de ouvir outros avisos, talvez chamamentos, não sei. É vindo de trás que se enxerga. E preciso aceitar a bênção: tornei-me uma construção de saudade, de todas as saudades.

Madre Rachel era, na Pasárgada, a preferida do rei, a mais querida, amante e amada de Deus, a mais fiel das servidoras, a mais doce e leal. Quem a conheceu não foi capaz de esquecê-la. Principalmente homens e mulheres, buscando pousadas para desacelerar o coração, sombras de refrigério, uma capela para orar, uma cadeira ao lado do fogão, uma xícara de café, um ombro para repousar. Madre Rachel – aos amargos – oferecia, num pratinho, o doce de abóbora que ela fazia com as próprias mãos, como se anunciando parte da doçura que tinha a oferecer. E amargores adocicavam-se.

Em Pasárgada, havia uma cozinha – ainda deve haver – e, numa das paredes, colocamos um retrato da freirinha depois que ela morreu. Não sei se ainda está lá. Mas esteve. Olhávamos como se o sorriso dela, mesmo numa fotografia, espantasse cansaços, afugentasse decepções. E, então, as imagens e lembranças readquiriam vida: jovens tocando violão para Madre Rachel, crianças correndo pelos descampados, invadindo a cozinha, agarrando-se a seu vestido de tecido xadrez. E a risada de Rachel se misturava à “sinfonia de pardais, anunciando o anoitecer.” E o alvorecer.

Madre Rachel morreu nos braços de poucos amigos, ouvindo, nos espaços de Pasárgada, moços cantando canções. Eles nunca souberam que, na verdade, entoavam cantigas para ninar o último sono de Madre Rachel. Ela sorriu, uma lágrima caiu-lhe dos olhos, suspirou como passarinho num alento final ou criança adormecendo. E foi-se. Eu vi. E, algum tempo depois, dos muitos ipês que tínhamos plantado, um – o único que evitava crescer – renasceu. Dizíamos que a alma de Madre Rachel passava por lá, regando- o. Ninguém teve, nunca, coragem de desmentir.

Prometemos àquela mulher, em seus últimos dias, construir o sonho que ela acalentara: uma gruta, humildezinha e simples, como foi a sua maneira de amar. Pasárgada, porém, passou a ser controlada por burocratas, os que se julgavam mais poderosos do que o rei. Eles impediram juntássemos algumas pedras e, no cantinho onde ela queria, fizéssemos a gruta de Madre Rachel. Fomos derrotados. Mas não me aborreci. Quando outra filha minha nasceu, imaginei-a grutazinha viva e, então, dei-lhe o nome da freirinha que se fora ao som de canções, Rachel.

Bandeira mostrou em seus versos: “E quando eu estiver mais triste/ Mas triste de não ter jeito/ Quando de noite me der/ Vontade de me matar/ – Lá sou amigo do rei – / Terei a mulher que eu quero/ Na cama que escolherei/ Vou-me embora para Pasárgada.”

Parece ser hora de voltar para lá. Bom dia.

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