A última tia

FamíliaHá poucos anos, diante de um jovem casal amigo – do qual perdi o contato – fui despertado para um dos meus mais alarmantes desconfortos morais e espirituais. Eles, marido e mulher, bem casados e amando-se, acabaram por desvendar-me a tragédia do desaparecimento da família. Vi e antevi o final previsto e determinado. Ele era filho único; ela, também. E haviam decidido ter também um único filho. Aquela criança, se perdesse os avós, contaria apenas com a finitude de pai e mãe e, se ficasse órfão, não teria irmãos, nem primos, nem tios. Seria, inevitavelmente, uma criatura solitária no mundo, suspensa, sem raízes. A família do filho único pode ser o germe inicial de seu próprio suicídio.

Perdi, na madrugada passada, a minha última tia, América, a que havia sobrado de uma família de nove irmãos, por parte de meu pai. Da família materna, todos os tios já se foram, com exceção de um, já idoso, que foi casado com irmã de minha mãe. As de meu pai e de minha mãe eram famílias imensas, com muitos irmãos, cunhados, filhos, netos, genros, noras. Desde as minhas primeiras lembranças, vejo-me cercado por irmãos, por tios, por primos. Cada aniversário era uma festa sem fim, ao mesmo tempo que com brigas, discussões, divergências. Família é essa maravilha de fraternidade e, também, quase que um inferno de desencontros. Por isso, é vida, é humanidade.

Já nem sei mais como as coisas acontecem hoje, tempos de shoppings, de hambúrgueres, de famílias de fins-de-semana. Mas não consigo imaginar adolescentes e jovens sem tios, pois são eles – tios e tias – os verdadeiros confidentes, interlocutores, aqueles com quem se pode falar aquilo tudo que não se deve e nem se pode falar aos pais. Ter tios é ser abençoado. Ter primos é saber-se membro e parte de uma tribo que se une por uma ancestralidade inexplicável. Pode-se ficar anos e anos sem vê-los, mas basta um encontro para que o carinho, a ternura, o amor renasçam como que ainda mais vivos.

Pensei naquele jovem casal de filho único, quando me chegou a notícia da morte de minha tia América Elias Herrmann, mãe do falecido Joãozinho Herrmann, mulher de seu amado João Paz Herrmann, avó, entre outros, do Gustavo Herrmann. É a tia que nos sobrava, a última. E acho que não avaliamos corretamente o significado de sua ausência, já idosa e doente que estava, especialmente depois da morte estúpida de João. Ela se tornara a matriarca da família, o último elo físico de um verdadeiro clã que, entre conflitos e sem grandes contatos, sempre se amou visceralmente.

Ficou-me um estranho vazio no peito, inquietante por ser tão dolorosamente revelador: há, agora, em minha família, uma orfandade geral, definitiva. Somos nós, filhos e sobrinhos, os responsáveis pelas novas gerações, agora apenas com bússolas invisíveis, de lembranças amorosas e definições pétreas. É um vazio melancólico, pois irremediavelmente comprovador da finitude, do fim, do colapso.

Minhas férias de infância eu as passei em Cosmópolis, na Usina Ester, onde meus tios João e América imperavam, lindos, inteligentes, cultos. Minha tia era tão linda que o povo de Cosmópolis inventara uma brincadeira: “Quem descobriu a América?” Os mais afoitos respondiam ter sido Cristóvão Colombo. E, de quem perguntara, vinha a resposta, com sorriso deslumbrado: “Não. Quem descobriu a América foi o João Herrmann.”

Lá se foi, pois, minha última tia. Dá-me um nó na garganta como se, depois de um belo filme, se anunciasse o fim. E me vejo, então, diante da estupidez de quase todos nós, do egoísmo, do individualismo, das lutas por causas que não valem a pena, de distâncias injustificáveis, que me trazem culpas, remorsos, arrependimentos: “Por que não ficamos mais próximos uns dos outros? Por que não nos reunirmos mais vezes? Por que famílias tão egoístas, isoladas, fechadas em si mesmas como ostras?” A triste realidade é que, desgraçadamente, quando a vida ensina, pode ser tarde demais. O futuro não existe, a não ser como hipótese. Quando chega, é o presente. E o que sobrou foi o passado. Felizes os que têm alegrias de que se lembrar. Pois elas podem nunca mais voltar. Bom dia.

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