Abreviar ou prolongar a vida

Abreviar e prolongar a vidaHá assuntos que – confesso-o – não consigo abordar. Sinto-me bloqueado, não sei se racional, se emocionalmente, se ambas as coisas. Suicídio, aborto, eugenia, eutanásia, eis alguns deles que me paralisam raciocínios conclusivos. E, no que me foi possível, mergulhei em estudos sobre eles, conhecendo quase todos os argumentos a favor e em contrário. Se, nos principais argumentos, chego a admitir razões em uns que outros, a conclusão se me escapa. E não ouso arriscar opinião.

Mesmo quando se fala ou se afirma que cada pessoa é dona de seu próprio corpo, fico em dúvidas. Até que ponto isso é verdadeiro? Meu corpo é mesmo meu, sou senhor dele conforme a minha vontade, por mais lúcida e livre seja ela? Ou o corpo é um admirável invólucro que me foi emprestado para abrigar algo maior, infinitamente mais amplo, mas indefinível, que costumamos chamar de alma?

Há algum tempo, li, de um escritor, uns cálculos perturbadores que ele fizera a respeito de nossas origens pessoais. Para ele, estadunidense, se de nossos dias à geração de Lincoln – cerca de 150 anos passados – teriam acontecido mais de um milhão de cruzamentos entre homens e mulheres para se chegar a ele próprio. Pensei em mim mesmo, chegando até apenas aos meus bisavós; meu pai, seu pai e sua mãe, seu avô e sua avó, já eram cinco pessoas. E mais cinco por parte de minha mãe: ela, sua mãe e seu pai, seu avô e sua avó. Apenas até eles, cinco homens e cinco mulheres cruzaram-se para eu nascer. Em meu corpo, há partes infinitas dos corpos deles.

Cada dia mais – e, em especial agora, quando mergulho fundamente em busca da memória de um tempo e de um lugar – me convenço de ser, a vida, um privilégio, um dom. Se for feita de tristezas e de dores, se de alegrias e venturas, essa é uma outra história, dependendo de fatores sem conto, de culturas, de filosofias, de aprendizados, de componentes os mais diversificados. Dor e prazer, alegria e tristeza, felicidade e infelicidade, isso, na verdade, são contingências da vida. Viver é estar lançado a esta maior aventura que se poderia conceber.

Nestes tempos, mais do que antes, se discutem condições ora para abreviar, ora para prolongar a vida humana. Para abreviá-la caridosa e generosamente, diante da irremediável chegada do fim. Ou prolongá-la para os que ainda são movidos pelo tônus vital da vontade de existir, de continuar. Veja-se um Oscar Niemeyer, com 102 anos, ainda apresentando projetos geniais de arquitetura, ao lado de uma equipe de jovens. Mas vejam-se, no entanto, multidões de homens e mulheres que, tendo chegado saudavelmente à velhice, não sabem o que fazer dela, vivendo como lesmas ou preguiçosos gatos ao sol. Produtos novos, medicamentos, aconselhamentos estimulam essas multidões a prolongarem ainda mais as suas vidas prazerosas. E ninguém reclama disso. Pelo contrário, há aplausos gerais. Faltaria, no entanto, uma pergunta: vale a pena viver tanto para tão pouco?

Parece que a discussão a respeito da eutanásia (a boa morte, morte assistida, na verdade o suicídio) está dando lugar a outro questionamento que me parece mais lógico e conforme uma milenar ética que nos acompanha: a ortotanásia, que significa a “morte no tempo certo”, ou eutanásia passiva, quando se limita ou se suspende o tratamento de doentes confirmadamente terminais.

De minha parte, fico em dúvidas quanto a meu próprio corpo, se sou mesmo dono dele, se tenho o direito de dar-lhe fim, de prolongar o que já estaria arruinado, de simplesmente ficar à espera do que aconteça. Se vim de corpos de pais, avós, bisavós, estou nos corpos de meus filhos e netos. O meu corpo é deles também. Como é da mulher que amo, desde que sejamos realmente uma só carne. Posso pensar em tudo isso, pensar muito, mas permaneço sem conclusão alguma. No entanto, uma certeza me fica e me acompanha: a morte, quando não acontece por circunstâncias imperiosas, ela chega devagarinho, devagarinho, chega como uma bênção quando o ser humano perde a vontade de viver. Quando não se tem mais para ou pelo que viver, abre-se a fresta para a morte chegar. Elefantes sabem disso e, sabendo-o, retiram-se da cena, indo para o lugar distante, onde ausentes de tudo e de todos, entregam-se para que o ciclo da vida se encerre e que chegue ao fim a graça e o privilégio de viver.

A vida é um tempo. Ou temos sabedoria para vivê-lo com prazer e alegria, ou teremos que acreditar seja mesmo apenas esse “vale de lágrimas” da oração melancólica, que nos vê, apenas, como “degregados filhos de Eva” e, não, como passageiros da aventura sem fim. Bom dia.

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