Ainda Chez

picture.aspxQuando a vida se alonga, deve ser natural compreender como puderam algumas coisas acontecer. As imagens se desfocam e perdem-se fios da meada. De repente, o absurdo se torna normal e o que parecia normal se faz absurdo. O tempo depura e, então, percebem-se coisas que não deveriam ter sido feitas e outras que deveriam e não foram.

Já escrevi sobre isso mas, ainda agora, pergunto-me o porquê de ter sido tão apaixonantes os caminhos do Comunismo nos idos da juventude. Era uma paixão, algo por assim dizer religioso. A chama atraía e fazia-se fogaréu. Para mim, João Chiarini foi fundamental, uma figura que me acompanha até hoje, como se não se tivesse ido. É uma permanência. Minha formação marxista foi, gota por gota, dirigida por Chiarini. Deu-me livros e revistas que ainda guardo, como a coleção da “Divulgação Marxista”, notável revista da década de 1940. Em “Divulgação Marxista” estavam os fundamentos do que seria a minha formação para participar do Partido. Voltei a folheá-la e, então, entendi o porquê de a juventude apaixonar-se pelo marxismo àquela época. E porque tudo acabou como bolha de sabão.

Estudantes, operários, jovens e adultos, ficávamos lendo e discutindo e aprendendo naquelas páginas admiráveis, estudos em grupos. Revejo alguns temas e me surpreendo ainda mais. Eis o sumário da revista n. 5: de Stalin, “Capitalismo e socialismo”; de Engels, “Princípios do Comunismo”; de Lênin, “Proletariado e Campesinato”; de Marx, “As greves e as colisões de operários”; ainda de Engels, “O amor cavalheiresco e o casamento burguês na literatura”; de Prestes, “Que são sectários?”

As lembranças me voltam com lucidez estranha, como que misturadas com emoção. Pois não há como negar a emoção de ter vivido um ideal, não importa qual tenha sido. Na juventude, o ideal apaixona e se transforma na própria vida. O comunismo e o partido tinham um não-sei-quê de aventura e de sonho, de esperança e de utopia que se tornava impossível não ser imantado. A doutrinação era eficiente e eficaz. Tudo cheirava a romance, a aventura, a mudanças. Tinha, pois, que esfumaçar-se.

A propaganda soviética era formidável. Demonizava os tempos do Czar – quando as aldeias e cidades mergulhavam na fome e na doença – e mostrava a reconstrução a partir das granjas coletivas, os “kolroz”, o surgimento do “novo homem”, o “homus sovieticus”, como se fosse mistura de romance e realidade. Mentira ou verdade, isso era o que menos interessava. O importante era a aventura, o despertar do sonho. Importante era ter em quê acreditar.

Pergunto-me: em quê estão acreditando os jovens? Qual o sonho que os move? A impressão – nem sei mais se é impressão ou certeza – que me fica é de ter havido uma ditatorial “lavagem de alma” para moços terem-se tornado submissos, anestesiados pelos desejos de consumo. Consumir e consumir, eis o grande ideal. E, antes, o verbo era quase o mesmo, quase. O ideal era consumir-se. Consumir-se por uma idéia, consumir-se por uma paixão, consumir-se por um sonho. Ora, não há criatura mais generosa do que um jovem. Se essa generosidade feita de energias não se canalizar para um sonho maior, há sonhos menores disponíveis: drogas, bebidas, promiscuidade sexual, jogos.

Sei lá. Sei, apenas, que ideologias sabiam doutrinar. Era apaixonante. A democracia não tem orientado, esculhamba. No entanto, basta olhar de lado para ver que a imagem do Chez permanece viva também para as novas gerações. Mesmo sem sequer saber realmente dele, da aventura em Cuba e também de desatinos, moços estão por aí com camisetas, a foto genial e mítica de Alberto Korda, bonés, como que um culto a Chez, remissão a Quixote. Melhor haja jovens com grandes paixões, mesmo equivocadas, do que amorfos. Bom dia.

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