Almas humanas, teias de aranha

picture (74)Acredito como num conto de fadas: a alma é uma só, universal, ampla e imensa. Paira sobre o mundo, navega pelo universo. Foi criada antes das coisas, sonho e a invenção maior do Criador. A alma seria como nuvem solta no espaço, leve, diáfana, delicada mais do que cristal. Ou porcelana.

As pessoas, quando nascem, cada qual tem direito a um pedaço, a um fiapo do todo. Com mãos invisíveis, apanha-se um poucochinho, leva-se consigo, como um vestido que se usa por dentro da carne. O que não sei, ainda, se a carne serve para proteger a alma, se a alma é que sustenta a carne. Na união de ambas, não acredito mais. Alma é alma; carne é carne. Parece-me que brigam entre si. A alma, porém, é maior. Mas sofre, prisioneira, comprimida. De grande, fica pequena. Pequena, apequena o homem.

Essas coisas, eu as descobri vendo aranhas tecendo suas teias num arbusto florido de meu jardim. Nunca tive tempo de acompanhar-lhes a obra da criação. Ou não tive olhos de ver. Ultimamente, porém, são-me os olhos que mais trabalham por mim, mesmo quando me recuso a ouvi-los. Pois também aprendi: os olhos falam. E falam para fora e falam para dentro. Aprende-se vivendo.

Comecei, pois, a observar aranhas entrelaçando teias. A delicadeza é tal que se me confirma: alma universal foi criada com pingos, borrifos, lambiscos de ternura. As teias parecem obras em porcelana, telas em branco onde se gravam impressões do início ao fim da vida. Em cada dia, um rabisco. Ou uma cor. Ou um borrão. Tal também ocorre com a alma humana. Um grito a assusta. Uma ofensa a magoa. Uma injustiça a machuca. E podem ser feridas incicatrizáveis. Ao se romper uma das rendas da teia de aranha, rompem-se todas as outras. Assim também é com a alma humana: basta ferir uma só para ferir-se a alma universal.

Tento entender a arquitetura e a engenharia da aranha, a dramaturgia, o enredo: as teias acolhem o bom e o ruim, o belo e o feio, sem capacidade de escolha. Não lhe é possível receber e agasalhar apenas asa de borboleta, a pétala da flor, o cisco da árvore. Caem-lhe nas malhas e nelas se prendem a mosca, o mosquito, a fuligem das chaminés. Na alma humana, também. Tudo fica impresso, tudo se recolhe, o belo e o horrível.

Quando nos indignamos com a barbaria e atrocidades cometidas por adolescentes e jovens, eis que falamos apenas de carne, de invólucro, de racionalidades. Por isso, falamos de muito pouco. Pois é a alma humana que adoeceu, alma da humanidade, atropelada por equívocos e loucuras suicidas.

Ora, não se fazem rendas com fuzis e metralhadoras. Nem com ódios. Ao se pensar em pessoa humana, temos que retomar a ternura perdida, a delicadeza esquecida, cuidados, atenções. A violência rompe os fios da renda, que se esgarçam e se rompem. A brutalidade rompe a teia de aranha tecida com magia. Almas destruídas não têm reparos. E a alma universal está cheia de buracos, violentada.

Jovens matadores, são almas destruídas pela violência e desamor. Pouco há a fazer com eles, contra eles. Mas há quase tudo a reconstruir para que não se multipliquem. Almas sobrevivem e se enobrecem de sopros e de carícias, de sons de flautas doces e de oboés. Tambores e estridências, gritos e violências são apenas sinais de guerra, incluindo guerras pessoais.

Obra de arte, a teia da aranha é entrelaçada no recolhimento. Mais delicada ainda, a alma de cada criança é tecida com zelo de lar. Basta isso. Bom dia.

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