Amarga diversão de amargos

AmargosPermito-me o direito de uma sinceridade alegre: sou um homem consciente de ter-me, a idade, chegado como bênção e graça. Pois, envelheci, e isso significa que vivi. E, mais ainda, que permaneço vivo para, no tempo que me resta, poder render graças por tudo o que me aconteceu, pela sobrevivência, pelo privilégio de – no palco e no teatro da vida – ter sido, ao mesmo tempo, ator, espectador, autor, participante e observador.

Não tenho a coragem de dizer professe, eu, uma ou alguma religião. Pois, na realidade, a necessidade de duvidar tem sido e ainda é, em minha vida, infinitamente mais instigante do que a necessidade de crer. E, no entanto, sinto que – dia a dia e cada vez mais – me cresce no coração e na inteligência uma religiosidade profunda. É como se, quanto mais o profano se avolume e intoxique, mais o sagrado se me fosse revelando a partir, em especial, das pequeninas coisas. Digo-o a amigos e pessoas queridas: não sei explicar o sagrado, mas sinto-o. E sei, também, que a razão jamais irá explicá-lo. Com perdão de Descartes, sinto, logo existo. De pensar, como se sabe, morre um burro.

Rendo, pois, graças pela maturidade que me chegou, presenteando-me com um corpo que ainda vibra de vitalidade. Tanta é minha gratidão que, a algum deus e a deuses desconhecidos, acendo velas todos os dias, como um velho índio que, por não saber o que acontece no mundo profano, busca auxílio ou inspiração no sagrado. Acender velas, para mim, é rendição ao sagrado que intuo existir mas não sei explicar. E não mais me preocupo com explicações. A ciência não me preencheu a alma. A poética e os delírios da mitologia preenchem-na.

Estas, pois, são palavras de um homem idoso, consciente de que as forças já diminuem, de que o próprio mundo de seus valores terminou. Mas que há princípios imortais e imemoriais, que o tempo, que a tecnologia, que a ciência não conseguem matar. Acreditar nisso é, também, acho eu, uma graça. Pois tenho visto multidões de aposentados, de velhos, de idosos que se recusam a entender e a louvar esse novo tempo da vida, um tempo de sabedoria e de entendimento espiritual, tornando-se amargos, tristes, derrotados, vencidos e – pior que tudo – “voyeurs” em um novo mundo: nada fazem, nada produzem, mas se alegram, em sua tristeza, em reproduzir e repassar, pela internet, até mesmo perversões alheias.

Somos, os idosos, um imenso exército moral de homens e mulheres experientes, talvez não mais uma eficiente força de trabalho, mas uma excepcional fonte de vivência. E esse novo universo digital, a internet, as conquistas da informática devem ser-nos um novo e ainda mais admirável instrumento de transmissão de conhecimento, de experiência, de vida, de equilíbrio, de sabedoria. Por isso, é lastimável e lamentável ver como frustrações e ranços cultivados diariamente acabam se transformando em amargos brinquedos de idosos amargos consigo mesmos e com a vida. Ora, se a internet propicia maravilhas, ela é, também, fonte de misérias e de infâmias. Se adolescentes, se garotos despreparados, se políticos com suas manchas espirituais fazem uso dessa conquista da ciência para difamar, caluniar, espalhar boatos, num anonimato covarde e progressivo – não se compreende que idosos, com o mínimo de sabedoria que a vida lhes possa ter trazido, se comportem de maneira amargamente semelhante.

Já estamos em plena campanha política que mostra suas garras imundas, com sucessão de calúnias, de difamações, de afirmações sem provas e sem origem. Que irresponsáveis façam uso delas, repassando-as, compreende-se, pois por isso são irresponsáveis. Mas que idosos – que viveram vidas honradas e lutas decentes – estejam destilando seus ranços pessoais através de um não-comprometimento com informações difamantes, isso é sinal de uma enfermidade espiritual sem cura, a da frustração e a do ressentimento com a própria vida. Nós, desse formidável exército de idosos brasileiros, poderíamos transformar o mundo com a soma de nossas experiências e de nossas pequenas sapiências. Por isso mesmo, é irresponsabilidade colaborar para piorar o que já existe de ruim. Bom dia.

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