Amargor de sonhos não realizados
O texto foi publicado no dia 14 de agosto de 1979 em “O Diário” e depois selecionado para o livro “Bom Dia – Crônicas do Autoexílio e da Prisão”.
Descobri estar de coração machucado. Talvez uma cicatriz muito recente que se abre quando menos espero. Não sei localizá-la, nem de que luta sobrou. A impressão que fica é a de uma bolsa de lágrimas que, a menor espetada, goteja. Ou sangra. Acho-a estranha, pois, antes, havia como que uma armadura que rechaçava pedras e lanças. Agora, até o pequenino alfinete faz doer. As cicatrizes abrem-se quando tocadas. As feridas sangram quando arranhadas. Confesso não saber quais são, mas devem ser antigas, tão antigas que se escondem debaixo da poeira do tempo e das caminhadas. Talvez sejam recordações que não quero ter, lembranças que não quero guardar. Mas ficam. Escondidas como uma semente que, de repente, brota, vem à luz, revolve a poeira ainda que devagarzinho.
A verdade é que a armadilha se rompeu e o coração ficou à mostra, indefeso, escancarado, aberto a todas as emoções. Por isso, alvejado e atingido. E se machuca nessa ânsia quase agônica de apenas querer amar, de não reconhecer rancores e nem de destilar ranços. Quando as pessoas se desnudam ou querem se despojar, acabam ficando vulneráveis. E o que percebo é a sensibilidade ter-se aguçado ainda mais, conflitando com a razão que convida a reações frias, impessoais. Não conseguirei, jamais, chegar à impessoalidade, à aparência neutra dos homens objetivos e práticos. Não quero e não tento. Se o fizesse, tudo seria artificial, não haveria autenticidade. Preciso apenas cicatrizar feridas, não deixar que sangrem, porque doem e fazem sofrer.
O presente é a soma de todos os retalhos do passado. Não há como fugir deles, pois são tantos os pedaços e tantos os retalhos que eu não teria minha própria história se conseguisse me libertar de todos eles. E o problema está aí, em não querer que certas lembranças aflorem, que algumas recordações retornem. Houve tanta coisa inútil, tanta luta estéril, tanto ideal desperdiçado, tanta força despendida – que me canso apenas com as lembranças. Estou carregando comigo uma sensação quase permanente de mediocridade, a impressão de que convivi, tão longamente, com tanta lama, que, mesmo limpando-me, enxaguando-me, purificando-me, o cheiro me acompanha. É um cheiro de amargura e de melancolia. Pois não quero olhar pra trás e não consigo.
A terra que eu amei continua sendo meu grande amor. Nela é que eu vim para a vida, nela construí meu lar, nela tive meus filhos, nela deixei meus amigos, momentos inesquecíveis de minha história. E as lembranças que me acompanham não são, desgraçadamente, as mais felizes, e, sim, as mais tristes. Por isso, ainda machucado, o coração sangra, a tristeza de ouvir uma única palavra e, através dela, reviver tudo: as lutas inúteis, os combates estéreis, gritos sem eco. “Eles continuam firmes” – disse-me um amigo. E bastou-me isso. Se “eles” continuam firmes é porque a vitória continua sorrindo para a indignidade.
E não entendo e não compreendo e minha inteligência não consegue conceber como foi possível chegar onde chegamos. É possível que seja assim tão amarga e pesada a pena pelo crime de omissão? Para mim, há apenas duas maneiras de ser plenamente feliz e nenhuma me é possível: estar aí, sem o presente; ficar por aqui, sem o passado. Cada um amarga seus sonhos não realizados. Estou amargando os meus. Bom dia.