Ame-o ou deixe-o

MédiciDurante a ditadura Médici – o momento mais rude da tirania militarista no Brasil – uma expressão, orquestrada oficialmente, dividiu ainda mais o país: “Brasil: Ame-o ou deixe-o.” Para os que se opunham ao regime militarista e à ditadura sanguinária, soou como uma ordem ao silêncio e, ao mesmo tempo, um convite a nos retirarmos do baile patrocinado pelo complexo empresarial-militarista. Pareceu-nos que amar o Brasil significava aceitar tudo, sem o direito de discordar, de protestar, de questionar. Aos beneficiados pelo militarismo, era a petulância dos donos da festa: “se não está contente, vá embora.”

Em 1970, ano terrível desse divisionismo nacional, as besteiras avolumavam-se em ambas as partes conflitantes, governo e oposição, defensores da ditadura e seus opositores. Nunca, talvez, a terceira Lei de Newton, a “da ação e reação”, se fez tão evidente. Pois, quanto mais o governo militar se tornava tirânico, mais a reação democrática tentava opor-se e resistir. As forças eram terrivelmente desproporcionais, pois o povo não tem o poder da força e das armas, ao passo que governos legítimos ou ilegítimos se sustentam pela força militar, recurso último quando as instituições ruem.

Pois bem. Em 1970 – ano do “Brasil Gigante”, do “Ame-o ou deixe-o” – aconteceu a Copa do Mundo que iria levar-nos à terceira conquista do campeonato mundial de futebol, paixão nacional. Aliás, há um erro imperdoável nessa qualificação que damos às conquistas da Copa. Não somos penta-campeões, mas cinco vezes campeões. Um pentacampeonato seriam cinco conquistas seqüenciais. Somos, na verdade, apenas bi-campeões, de 1958 e 1962. E, depois, campeões em 1970, 1994 e 2002. Não estamos, pois, na África do Sul, indo em busca de um hexacampeonato, mas do sexto título de campeões do mundo. No entanto, essa diferenciação interessas a quem, num tempo em que palavras nada mais significam e nem mesmo a História tem importância?

Essas coisas, escrevo-as, refletindo sobre essa verdadeira guerra que o Dunga está sustentando em relação à imprensa e, também, à torcida brasileira. Em 1970, intelectuais de esquerda – em oposição ao governo – tentavam convencer o povo a torcer contra a seleção do Brasil porque, em caso de vitória, poderia haver o fortalecimento da ditadura militar. Houve até quem tentasse torcer contra. Mas a maravilha do futebol brasileiro, daquela seleção, era tanta que o deslumbramento e a paixão foram infinitamente maiores do que a medíocre circunstancialidade política. O Brasil todo torceu apaixonadamente por aquela seleção, que fascinava, que empolgava, a verdadeira “Pátria em chuteiras” de que nos falava, sabiamente – vê-se agora – Nelson Rodrigues.

E agora? Outro dia, em entrevista, o jogador Elano nada quis responder a jornalistas dizendo ser apenas um empregado da CBF. Logo, ele não devia satisfações ao povo, aos apaixonados por esse traço de união nacional que é o futebol. Dunga cumpre ordens da CBF e esta nada mais faz do que responder à FIFA. Os jogadores convocados – exceção de um que outro – estão distantes de todos nós, jogando em outros países, cuidando de suas vidas milionárias. Se o Brasil passar por algum vexame, a quase totalidade dos jogadores nem sequer retornará ao Brasil para ser cobrado, exigido ou vaiado. Se formos campeões, não teremos – a não ser por algum momento – quem cumprimentar na esquina, saudar nas praças públicas, ovacionar nas avenidas monumentais. E nem mesmo desejar erigir bustos, monumentos, como se fazem a heróis nacionais. Pois eles, perdendo ou ganhando, são estranhos entre nós.

Futebol é paixão, apenas isso. E a nossa está sendo uma paixão virtual, paixão à distância. Nossa seleção é muito mais um grupo do que uma representação nacional. Dunga, cada dia mais, se parece a um sargento cumpridor de ordens de uma ditadura invisível mas existente. Dunga não é dos nossos, dessa paixão. E, nessas coisas, pensei ainda mais amargamente ao ver a Alemanha jogar, com uma garotada plena de vida e de paixão, jogadores, todos eles, jogando na própria Alemanha, participantes do cotidiano do povo, sentindo-se responsáveis perante a população e não perante organizações.

Pensei muito e muito nessa nossa seleção, que nem sequer estreou. E, num resquício de amargura, veio-me a frase amarga, antiga: “Seleção: ame-a ou deixe-a.” Não irei deixá-la, pois a paixão pelo futebol é plenificante. Mas não sei e não consigo amá-la. Com Dunga, ela me parece um batalhão de soldados sob um comando militarizado. E não tenho nada a ver com isso. Bom dia.

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