Amor de eternidade

picture (98)Quando me chegou às mãos o convite, não sei se o sobressalto foi-me de susto ou de espanto, mas sobressaltei-me. Dizem, porém, ser bom sinal, o espanto. Pois quem se espanta se maravilha. Deve ter sido o que me aconteceu ao ver o convite: parecia mágica.

Voaram-me os pensamentos, acabei rindo-me de mim mesmo e de minha incapacidade de entender as coisas. Pois lá estava, em minhas mãos, como que outra dessas divertidas brincadeiras que os céus fazem com a tolice da racionalidade humana. Tudo é tão simples e, no entanto, a razão consegue complicar, elucubrando, querendo entender, absorver, equacionar.

Tolos, ficamos racionalizando sobre o amor, indagando se realmente existe e se, quando existe, é eterno. Em minhas mãos, o convite era um testemunho. E os meus repentinos susto e espanto aconteciam-me por perceber que não se tratava de amor de romance, de amor assexuado, de amor cortês, de amor idealizado, de amor de álbum de família. Eram apenas dois amigos meus, casal muito próximo, completando as bodas de ouro.

O casal, pouco mais velho do que eu, fez parte de minhas relações pessoais. Viajamos juntos, passeamos juntos, nossos filhos cresceram juntos. E eu não percebi que eles tinham chegado às bodas de ouro. Que tinham dado, por 50 anos, o testemunho do amor vivo, verdadeiro, real, possível. Estavam ao meu lado e eu não percebera. O amor, portanto, passava por mim, impregnava-me, contagia-me – e não vi.

Ora, começo a ter receios de castigos. Pois haverá que ser punido aquele a quem, sendo tantas maravilhas reveladas, não as cultivou. E eu, incompetente para amores definitivos, fico fazendo de conta que não há eternidade de amor, que não existem amores que sobrevivam. Pois tenho sido testemunha de amores eternos e, talvez por temê-los, fico fingindo crer na relatividade do homem, fugindo ao absoluto do espírito. O amor é mais do que um discurso.

Na verdade, nunca tive o direito de duvidar disso. Repito, repetindo-me: vi meu pai morrer de amor. Quando minha mãe se foi, ele começou a apagar-se como vela extinguindo-se lentamente. Alguns meses depois, num entardecer, fui chamado para retirá-lo do túmulo de minha mãe, sobre o qual ele se deitara para morrer. Ele ia ao cemitério três vezes por dia, implorando que ela viesse buscá-lo. O pedido foi-lhe atendido naquela tarde. Caiu sobre o jazigo, ficou. Morreu de amor.

Bodas de ouro, confesso tê-las presenciado, poucas vezes, em celebrações que, tolamente, pensei fossem quase que caricaturais. Quero ser franco: toda vez que, num altar, vi um casal idoso celebrando cinqüenta anos de união, olhei-os apenas com ternura, como se estivesse presenciando o batizado de criancinhas. Pois, num mundo que exalta paixões e a juventude, devo ter perdido, também, a capacidade de ver a humanidade dos idosos, esquecido de que bodas de ouro também celebram a carne. E que homem e mulher, embora envelhecidos, viveram paixões, desejos, amores, explodiram em músculos, hormônios.

Conseguirei escapar de castigos? Pois não tenho o direito de duvidar. Até para que eu visse para crer, as coisas foram-me mostradas. Em minha família, o amor aconteceu de maneira esplendorosa. Como dei-me o direito de duvidar do amor eterno? Com o convite de bodas de ouro de meus dois amigos, espanto-me. O amor eterno convivia a meu lado e eu não tinha percebido. Descubro acontecer-me sempre. O meu amor devia estar comigo e, também, não vi. Foi-se. Bom dia.

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