Amor materno, um mito?

Se me perguntassem qual o papel da mãe nos tempos atuais, ficaria confuso para responder. Pois eu diria ser, a mãe, o eixo de equilíbrio das sociedades humanas. Ou seja: é a mulher esse centro irradiador de vitalidades e do qual depende o movimento humano. Sei, porém, que, se o dissesse, correria o risco de ser ridicularizado ou tido como um tolo antiquado. Pois a maternidade adquiriu outros e tão novos papeis que, certamente, apenas o tempo dirá se mais adequados, se apenas lastimáveis.

Na verdade, fico – cá, com meus antigos botões – com receio de imaginar-me criança hoje. Lateja, em mim, algo difuso e angustiante, como se – ao ver-me criança – sentisse o vazio de uma orfandade de pais vivos. E faço-me perguntas inúteis: fosse, eu, criança hoje, amaria essa nova mãe que se impôs ao mundo tão diferentemente de poucas gerações anteriores? Fosse, eu, criança hoje, sentiria falta de mãe se ela morresse? E que lembranças eu guardaria, além de idas a shoppings, a lanchonetes, a passeios de fins de semana ou de convívio em alguns dias de férias? De que comida de mãe eu me lembraria? E de qual cantiga de ninar? Tenho receio de pensar.

E o receio aumenta – com dúvidas e angústias ainda maiores – quando me lembro do livro “O Mito do amor materno”, da pensadora francesa Elizabeth Badinter, que abalou convicções nos 1980. Badinter – que se tornaria ministra da cultura da França – defende, após notáveis e exaustivos estudos, a tese de ser, o instinto materno, um mito universal. Com provas históricas dramáticas, a pensadora conclui que o amor de mãe é apenas um sentimento humano como outro qualquer. E que, ao contrário do que acreditamos nos últimos dois séculos, esse amor não está profundamente inscrito na natureza feminina. Badinter abriu brechas dolorosas numa engenharia moral e espiritual que construiu as relações familiares.

Ler aquele livro é, de certa forma, perder ilusões, algumas delas das mais caras à civilização ocidental. Pois a sacralidade da mãe desaparece. Ter filhos, até o século 19, não era bênção mas conseqüência, apenas, do instinto procriador. Ou acidente. E, com crianças, chegavam mais problemas e dificuldades do que alegrias. Mães, incluindo as mais pobrezinhas, enviavam as suas crias para casas de amas, para que outras mulheres as criassem. Um relatório de 1780, feito pelo tenente geral de polícia de Paris – recuperado pela escritora em seus estudos – deu conta de uma realidade tenebrosa: de cada grupo de 21 mil crianças, que nasciam anualmente, 19 mil eram confiadas a amas fora do teto materno. As famílias de mais posses enviavam os filhos para regiões próximas a Paris. As desventuradas, para localidades distantes.

Foi Rousseau um dos paladinos de uma nova educação, especialmente nas relações entre pais e filhos, a responsabilidade materna quanto às crianças. No clássico livro “Émile”, ele observou, sendo citado por Badinter: “Essas doces mulheres que, livres de seus filhos, entregam-se alegremente às diversões da cidade são culpadas de preguiça, de insensibilidade e de egoísmo. Serão punidas na própria carne, pois os filhos que abandonaram desde o nascimento não lhes manifestarão ternura, nem respeito. Os maridos serão volúveis e toda a família será feita de estranhos que se evitarão.” Teria, Rousseau, falado para os seus contemporâneos ou antecipou o que ocorre, sob outras formas, em nossos tempos? Tenho medo de pensar.

Se me perguntassem, pois, qual o papel da mãe nos tempos atuais, negar-me-ia a responder. Pois não saberia fazê-lo. A minha experiência pessoal é riquíssima de amor familiar, de presença constante de pai e mãe, de carinho, de permanentes cuidados maternos. Hoje, a minha orfandade é da ausência causada pela morte. E ainda dói. As lembranças são vivas e carrego lembranças que constituíram a minha própria formação de homem. Eu não saberia ser criança hoje, pois haveria de querer minha mãe ao pé da cama pedindo-me para, com ela, recitar a Ave Maria noturna; o beijo para ir à escola, o beijo para voltar; as falsas chineladas no bumbum quando de minhas traquinagens; minha mãe assistindo-me nas machucaduras dos folguedos diários nos quintais. E o lanche de pão com ovo que ela me oferecia como se fosse banquete de rei.

Não sei, pois, qual é o novo papel da mãe. Mas sei qual era o de antes. E rendo graças especialmente por minha geração não ter sido marcada pela ausência que Rousseau viu e lamentou: “Se as mulheres voltarem a ser mães, dentro em pouco os homens voltarão a ser pais e maridos. (…) A família será unida e a sociedade, virtuosa.”

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