Anônimos que salvam

Basta pensar com um pouco mais de coragem para se descrer do ser humano, num misto de profunda admiração e de desprezo. Afinal de contas, para que servimos na ordem do universo? Qual a importância? Somos “obra prima de Deus” ou uma simples desordem da natureza, sais que não combinaram, a entropia deformante? As tragédias e crueldades em tantas partes do mundo impedem esperanças. Árabes e judeus, católicos e protestantes molhando a terra de sangue, o fanatismo muçulmano, a fome e a sede insaciáveis de poder – há uma cortina de poeira impedindo vislumbrar luz no final do túnel. Não se vê sequer o túnel.

A história humana ainda é feita de medos. Diante do horror, dá para compreender os que – ao longo dos séculos -se recolheram, os que fugiram, procurando respostas no mistério, além da terra, além da carne. A perplexidade atordoa, cega, impede ver saídas. O medo ao mundo motivou o desprezo por ele. Desprezando-o, muitas gerações – e por alguns séculos – fugiram, recolhendo-se em mosteiros, castelos, conventos. Foram tempos em que a solução parecia estar em desprezar e esconder-se – e não em reformar, mudar, transformar.

Mexemos e mexemos para continuar tudo igual, ainda que diferentes as aparências. Fortes e castelos e cidadelas protegidas deram lugar a prédios de apartamentos, a condomínios horizontais e verticais. Os profetas do “contemptus mundi” – no desprezo à carne, ao amor, aos sentidos – fugiram e envenenaram-se de seu pessimismo. Renunciando ao mundo, mataram a esperança. Agora, aprisionamo-nos em cidadelas em que se desprezam não mais o mundo e o século, mas valores do espírito, da generosidade, do sonho milenar de vivência fraterna. No prazer, o pessimismo permanece. O desprezo parece ser o mesmo. E, por isso, não dará certo ainda outra vez.

A barbárie desanima. O olhar de cada criança sobrevivente aos massacres nos campos de tantas guerras é, na verdade, o mesmo olhar de nossas crianças nas ruas. A estupidez humana é abismante, como se fosse infinita. E, paradoxalmente, a generosidade do ser humano é transformadora como se a força da inércia fosse superior à da ação. É o que ainda nos salva. Pois, quando a inviabilidade do ser humano parece cada vez mais óbvia, há santos que nos animam. E eles não estão em altares, mas nas multidões de santos vivos, que se espalham pelas cidades, campos, vilas, ruas. Vendo-os, compreende-se como tudo pode ser mais simples. Pois há muito mais santos vivos do que imaginamos, sem que a televisão e jornais e revistas lhes revelem os rostos e contem suas vidas. Estão por aí, vivos e sobreviventes, espalhando uma santidade anônima que vence desânimos. Neles, mantêm-se essa luz do mundo, esse sal da terra. Invisíveis aos olhos do rosto, escancarados aos do coração.

Nas ruas, as multidões parecem cegas, pensando, tramando, articulando, sem perceber os anônimos que realizam milagres diários, que esparge bênçãos cotidianas. Santos, no início, eram mártires da fé, uma escolha por Deus. Os nossos santos anônimos, no entanto – vivos e sobreviventes – muitas vezes, até duvidam da existência de Deus. São santos pela humanidade que transudam, pela generosidade que deles transborda. Amam as pessoas e as coisas vivas apenas por serem pessoas e coisas vivas. Não é por amor a Deus que amam. Amam por amor ao próprio ser humano. A bondade de poucos compensa a crueldade de milhões. E, então, o homem pode ser perdoado. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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