Apenas Ilda, a Neca

Já me cansei dessa responsabilidade de, como jornalista, noticiar o desaparecimento de grandes amigos e de personalidades que dignificaram Piracicaba. A cada perda, sinto que o mundo de Piracicaba se vai apequenando, ainda mais penosamente pelos atropelamentos desumanos que caracterizam esses tempos obscuros. E o meu mundo pessoal, também. Convenço-me, cada vez mais, de não existirmos sozinhos, da tolice imensa de individualismos estéreis. A morte de Ilda Borges Gonçalves – apenas Ilda, a Neca – é outra perda que dói, que causa perplexidade e – pelo menos a mim e à minha geração – a clara certeza de, realmente, estarmos no final de um tempo glorioso e de um mundo esplêndido.

Para mim, há uma palavra que pode explicar Ilda: heroína. Poucas mulheres vi e conheci com a sua tenacidade, sua força, sua integridade e – acima de tudo – a capacidade de renúncia e de doação. Tive o privilégio de escrever, em livro, a jornada da “Magic Paula”, a grande estrela do basquetebol mundial, filha de Ilda e de Eberard Gonçalves da Silva. Aliás, Neca e Beto, pais de quatro Marias: Cássia Maria, Maria Paula, Maria José (Dudé), Maria Angélica (Branca). Tudo começou na então pequenina Oswaldo Cruz.

Durante um longo e inesquecível ano, privei da amizade e da intimidade da família, ouvindo histórias, relatos, consultando documentos, os arquivos que Ilda – como se profetizasse o futuro brilhante das filhas que seriam campeãs – elaborava e guardava com tanto carinho. Um dos meus entrevistados – em Oswaldo Cruz – revelou o que havia na mágica de Paula: “O coração de Beto, a inteligência da Neca”. E Neca, a Ilda, além da inteligência tinha e manteve, até o final da vida, o que se tornou marca inconfundível da família Gonçalves: a obstinação.

Como imaginar, hoje, que uma apaixonada mãe permitisse que a amada filha deixasse a cidade, a casa, a família, com apenas 12 anos de idade para aventurar-se no basquetebol? Ilda, com o coração em frangalhos – mas com a convicção de que aquele era o futuro de Paula e que o mundo ganharia uma nova estrela – não apenas permitiu, mas estimulou e incentivou. Na vida, Ilda, a Neca, não conheceu o impossível. Ou melhor: tornou possível o que parecia impossível. Mesmo na pobreza, na luta dos primeiros anos e ao lado de Beto, Ilda se tornou funcionária da Prefeitura de Oswaldo Cruz, jornalista, contadora, fez cursos, um verdadeiro moto-contínuo que, antes de mais nada, gerou, adubou e fez crescer as suas quatro Marias.

Ilda Gonçalves – e sei que o confirmarão todos os que a conheceram – foi uma heroína, uma fortaleza inexpugnável. Não houve obstáculo que ela não superasse, nem dor de que ela reclamasse. Sua presença na vida esportiva e social de Piracicaba – como diretora de esportes, como mentora das filhas, como divulgadora e propagadora dos esportes – está marcada em nossa história. Digo-o com o coração aberto: sem Ilda, não haveria Paula nem Branca. O que prova que, também ao lado das grandes estrelas, há uma grande mulher. Ilda foi essa grande mulher.

Nos últimos anos de sua vida – sem querer parar, estacionar, pois nunca soube fazê-lo – Ilda se tornou voluntária das ações filantrópicas do Clube da Lady, sendo uma de suas diretoras. E, como sempre, das mais eficientes. Peço permissão ao leitor e, diante da morte de Ilda, penso também em mim. Pareço predestinado a escrever o obituário das grandes e inesquecíveis personalidades piracicabanas, da gente que honrou e dignificou nossa história. Isso dói. Mas, ao mesmo tempo, me leva a reconhecer que sou um homem privilegiado por ter conhecido e convivido com esses nossos heróis e heroínas, com essa gente de um tempo que gerou grandes homens e grandes mulheres. Conhecer de perto Ilda foi-me outro privilégio. Tchau, Neca querida. Bom dia.

4 comentários

  1. tadeu lassen em 22/11/2012 às 19:56

    Conheci dona Neca por muitos anos. Me lembro quando acompanhavamos nosso time de basquete, o Clube das Bandeiras, por onde quer que ele fosse, seja de ônibus, trem ou carro. Torcedora incansável, dona Neca contagiava toda a torcida, juntamente com sua grande amiga, dona Neide.
    Dona Neca deixou Osvaldo Cruz há muitos anos, mas, sempre que podia, retornava para rever os amigos e quando os via, era aquela festa.
    Dona Neca deixará muita saudade e muitas lembranças nos corações de quem a conheceu.
    Realmente era uma pessoa especial.

  2. Nilva Morais em 23/11/2012 às 09:05

    Somos previlegiados de ter D. Hilda por perto. Quem a conheceu, temos muitas em nossos corações. D. Hilda já é saudades. Super beijo.

  3. Sandra Lemos em 23/11/2012 às 09:38

    Cecílio, meu querido amigo: como é gostoso ler o que vc escreve… com tanta emoção… estou em prantos aqui…. mas na certeza que D. Ilda está ao lado do Pai !!! um grande abraço Cecílio … e saudades das nossas conversas!

  4. Rogério Viana em 23/11/2012 às 09:46

    Cecílio, outro belo – e triste – texto seu. Uma justa homenagem à grande tia Neca, como você disse, a mãe das quatro Marias. Dona Ilda, para mim, sintetiza o lado bom das mães que investem no talento de seus filhos, mas sem querer que esses fizessem o trabalho que elas não conseguiram. Tia Neca tinha certeza que suas filhas seriam pessoas especiais, antes de terem sido atletas extraordinárias. Tia Neca investiu para que suas filhas fossem pessoais especiais. O que veio depois foi apenas muito trabalho, dedicação, esforço, renúncia, dores e milhões de alegrias, nossas, sobretudo. Um abraço, querido Cecílio. E que Deus permita a você continuar registrando não obituários de amigos queridos, mas a presença fundamental de pessoas especiais em nossas vidas, como foi a da dona Ilda, nossa querida e já inesquecível tia Neca.

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