Apenas William

Já faz dias que aconteceu. Soube logo que ocorreu. Mas não fui ao sepultamento. Nem ao velório. Pois confesso não mais estar suportando dizer adeus. E, da mesma maneira, começo a cansar-me de despedidas, como se me tivesse tornado o necrologista de amigos queridos, de pessoas que enriqueceram o mundo com suas vidas.

Minha mulher tem feito o inventário de minhas tantas e tantas coisas escritas, tantas e tantas que não consigo sequer avaliar tanto e quanto. Ela começou a separá-las por crônicas, por entrevistas, editoriais, reportagens, ensaios, levantamento de 55 anos de atividades jornalísticas e literárias. E, portanto, de 55 anos de participação, de observação e de presença, décadas preciosas nas quais vi, ouvi, falei, convivi, conheci, briguei, lutei. E, especialmente, encontrei pessoas admiráveis. À minha mulher, sugeri, acho que amargurado diante de tantas perdas: “Os necrológios que escrevi dão diversos livros, despedidas a homens e mulheres inesquecíveis.” Fico com a impressão de ter sido designado para apagar a luz quando o último sair. Ou de ir-me tornando, à beira do rio, barqueiro solitário vendo outros irem-se para a outra margem.

Não fui despedir-me de William Zerbetto. Nem levei meu abraço à sua amada Terezinha, minha comadre. E à Denise, que me deu a notícia, minha afilhada. Neste 2011, completam-se exatos 50 anos do dia em que conheci William Zerbetto, um jovem fotógrafo que, além de seu trabalho, encantava por seu sorriso simples, honesto, generoso. Foi na Folha de Piracicaba, em1961. Com o professor Waldemar Arruda – jornalista que fora contratado para dirigir a Folha – William viera de Leme que, diante de Piracicaba, era uma pequenina cidade. O jovem fotógrafo – e eu mais jovem do que ele – vinha para mostrar seu talento, sua capacidade profissional, enriquecidos por uma dignidade pessoal que lhe transpirava dos poros.

Em poucos meses, Waldemar Arruda deixou o cargo. William ficou. E, no lugar do antigo diretor, fui eu, com apenas 21 anos, o indicado para dirigir a noviça Folha de Piracicaba, o mais apaixonante jornaleco que já existiu, filho de milionários e comendadores, mas pobrezinho, quase beirando à miséria. William, já casado e com mais experiência, se tornou um dos meus confidentes, um ainda quase rapazola que aceitara o desafio de assumir à direção de um jornal. E foi William – ao lado de Osvaldo Sobeck, Luiz Piza, João Vendemiatti, dr.Cera, Domingos Aldrovandi – companheiro de lutas, conselheiro, partilhando dificuldades, sofrimentos, agonias, incluindo as do golpe militar de 1964.

O destino da Folha estava traçado desde o seu nascimento: a morte lenta. Pois nascera doente, paupérrima, anêmica, como um desses cachorrinhos vira-latas que, parecendo pertencer a muitos, morre de fome por falta de cuidados. William, sem outra atividade e tendo família para sustentar – sua mulher, Terezinha, verdadeira heroína, inquebrantável naqueles anos difíceis mas maravilhosos de idealismo e de sonhos – ingressou na ESALQ, como fotógrafo. E lá ficou, até aposentar-se. Foi um dos mais queridos funcionários daquele nobre instituição, convivendo com grandes mestres e com serviçais humildes. William era assim: sua nobreza de espírito lhe dava a dimensão da humildade, a mais bela das virtudes.

Ficávamos sem nos ver até mesmo por alguns anos. E, no entanto, ao nos encontrarmos ocasionalmente, era como se a última conversa tivesse sido no dia anterior. E eram encontros com a marca dele, com a sua alma estampada no rosto, no eterno e transparente sorriso que William Zerbetto transmitia ao mundo, como que numa ação de graças.

Não fui ao enterro do Cocenza. Não fui despedir-me de William Zerbetto. Estou cansado, cada vez mais cansado. Cada um que se vai leva um pedaço do mundo formidável que vivemos à nossa época, pedaços de sonhos, pedaços de esperanças, como se, nas grandes lutas de que participamos, nenhuma derrota houvesse acontecido. Ou melhor: fomos derrotados em quase tudo. Mas não fomos vencidos. William Zerbetto está nesse panteão dos homens quase anônimos, silenciosos, que ajudaram a construir um tempo memorável. Tão memorável que o próprio William permanecerá nessa memória coletiva. À Terezinha e aos filhos e netos de William, o meu ombro amigo. E minhas lembranças imorredouras. Bom dia.

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