Arruda e greve de fome
Confesso não ter entendido, até hoje, a expressão “greve de fome”. Se se falasse em greve de alimentação, acho que, para mim, ficaria mais explícito. Greve foi, desde o início, um recurso de trabalhadores diante de um conflito industrial. Para ser considerada greve, a abstenção do trabalho teria que ser grupal. A paralisação de trabalho por uma só pessoa não configura greve, mas o que se conhece como absenteísmo. A greve, portanto, implica ação coletiva, no sentido de reação em conflitos industriais.
Uma das mais notórias, senão a mais, das chamadas greves de fome da história foi a de Gandhi, em sua luta em prol da independência e da dignidade da Índia. Gandhi, no entanto, não fez sua greve pessoal de alimentação contra governos, contra o Império Britânico, mas como um martírio de si mesmo para que o povo indiano retornasse à resistência pacífica, abandonando a violência. O martírio voluntário de Gandhi mobilizou a nação e foi o mais notável testemunho da força de um ideal, de um sonho, de uma proposta de vida nacional. O protesto de Gandhi carregava, em si, o sonho de todo um povo.
Essa chamada greve de fome é uma ação de tal forma pessoal que até congressos médicos já se realizaram para estabelecer um comportamento ético entre o paciente (o jejuador) e o médico que o atenderia. Há que se respeitar a sua vontade até mesmo quando, em perigo de vida, ele insiste, conscientemente, em prosseguir em sua atitude. Trata-se, pois, de decisão que pressupõe consciência e, portanto, responsabilidade pessoal de quem a pratica. Quando é por razão política, o jejuador dispõe-se a fazer um confronto com o objeto de seu gesto: governo, Estado, sistemas políticos, etc. Trata-se de alguém contrapondo-se a um estado de coisas ou a forças mais organizadas.
Quando dos debates para a transposição do Rio Francisco, um bispo católico, d. Luiz Cappio, resolveu fazer a dita greve de fome, que insisto deveria ser chamada de greve de alimentação ou jejum extremado. Com sua atitude absolutamente pessoal, ele se propôs a enfrentar um projeto nacional. Ninguém teve o direito de intervir, de proibi-lo, de impedir-lhe a decisão. O bispo jejuou, o projeto continuou. O povo não o acompanhou.
A greve de fome em Cuba tem ocupado manchetes dos principais jornais e órgãos de difusão brasileiros, sintomaticamente os mesmos que fazem oposição inarredável ao presidente Lula e a seu governo. A tecla é a mesma, como num sambinha de uma nota só: Lula teria que se manifestar em favor do grevista da fome, que protesta contra o governo tirânico de Cuba. São os mesmos que silenciam diante de atrocidades no Iraque, no Afeganistão, na África, em Guantánamo, na China, na Rússia. Ora, Lula nada tem a ver com greve de fome de ninguém, em lugar nenhum. O mínimo que se tem a fazer é respeitá-la ou considerá-la simplesmente inútil ou idiota. Mesmo porque o próprio Lula já tentou fazer a sua e se arrependeu. Foi burrada, ele mesmo reconhece.
Se há que se tomar posição em relação a greves ditas de fome, ter-se-ia que fazer um movimento similar toda vez que o Garotinho, ex-governador do Rio, quiser fazer a sua, como já o fez há algum tempo. E os jornalões, será que irão exigir que Lula se manifeste se o José Roberto Arruda, o pilantra de Brasília, resolver fazer uma greve de alimentação – vá lá, greve de fome – na prisão onde se encontra? E se o mesmo acontecer com o Fernandinho Beira Mar, deixando de comer em protesto pelas condições da prisão onde está encarcerado?
De minha parte, se o José Roberto Arruda resolver fazer a tal greve de fome, o meu desejo maior é o de que ele sofra muito. Aliás, faz greve de fome quem quer. E o motivo de quem a faz nem sempre merece apoio, aplauso, comiseração ou solidariedade. Mesmo porque, nas ruas brasileiras, há milhões de famintos, de homens e mulheres e crianças esquálidos que não comem, mas sem greve alguma. Fome é uma tragédia que precisa ser mais respeitada para não se transformar em palhaçada política. No mundo, a ONU calcula 1 bilhão de pessoas passando fome. Que tal uma cruzada mundial de protesto contra essa tragédia? Bom dia.