Artistas e intérpretes

Vai-se tornando cada vez mais comum o uso, por marqueteiros, do prestígio ou da popularidade de atores e de atrizes de televisão, de jogadores e técnicos de futebol, das agora chamadas celebridades, que costumam desaparecer com a mesma rapidez com que surgem. Todos eles passaram a ser chamados de artistas. Seriam mesmo?

Ora, quando atores e atrizes, cantores aparecem em programas políticos ou em divulgação de produtos – e político e sabonete estão se nivelando a partir do marketing – ninguém lhes nega o direito profissional de venderem a sua técnica, que é a da interpretação. São profissionais desse universo do entretenimento, da comunicação, do lazer, da ciência de vender, de convencer. Há, nos pés de um jogador de futebol, muito mais arte do que na fala de um ator de televisão. Um Pelé cria, inventa; o ator interpreta.

O artista é essa criação, essa engenhosidade, essa chispa que não se sabe de onde vem – mas que é chispa criadora. Shakespeare é o artista; o ator shakespeareano é um intérprete que, com seu talento dramático, pode ser genial, mas sem deixar de ser intérprete do criador. O diretor da peça teatral é o artista na recriação que faz da obra inicial. O ator – com suas improvisações que podem ser surpreendentes ou geniais – continuará sendo intérprete. Tornar-se-á artista quando ou se criar um novo texto, ainda que inspirado no que ele interpretou.

Vulgarizamos de tal forma as palavras arte e artista que, por sua vez, diminuímos até mesmo a grande beleza dos artesãos, a estupenda criação dos artífices. Um recitador passou a ser artista, visto, algumas vezes, até com mais respeito do que o poeta que compôs o poema. É o mundo espetacular, o mundo dos espetáculos, das magias – onde até um mago passou a ser membro de uma academia de letras saída do útero artístico de Machado de Assis. Brinca-se de ciência e de arte com a serenidade com que se brinca com o infinito e o mistério. E, no entanto, ciência e arte se encontram no meio do caminho, quando beiram as fímbrias das roupagens de Deus. A arte – e a ciência, em alguns de seus mais espantosos momentos – é a maneira de o ser humano se aproximar da divindade. Pela criação humana, o artista se aproxima da criação divina. Interpretar é outra coisa.

Essa confusão, no entanto, pode ser perigosa na formação da opinião pública dados os equívocos que pode acarretar. Quando se admite que o ator é um simples intérprete, a sua fala e a sua mensagem publicitária tem valor relativo. No entanto, se é incensado como grande artista, a dimensão é outra. Na verdade, confundimos, no mundo espetacular, popularidade com notoriedade. Ora, como cidadãos, todos têm o direito de manifestar sua opinião, ainda que, para muitos, opinião e palpite sejam a mesma coisa. Como intérpretes, porém, criam confusões, pois permitem dúvidas: estão interpretando ou dizendo o que sentem; dão voz a uma peça de marketing, ou falam conscientemente? E quais os interesses ocultos, além dos já revelados em forma de cachês milionários?

Na propaganda e na publicidade, o artista é o marqueteiro, o criador da peça; atores, atrizes, celebridades são apenas intérpretes. Vendendo o seu prestígio e sua imagem, eles, inevitavelmente, se associam também ao produto promocional. Ou haverá alguém, ainda, que não vincule Zeca Pagodinho a cervejas? Então, bom dia.

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