Assobios e loucos da aldeia

LoucosFoi meu pai quem, há mais de 30 anos, me chamou a atenção para sinais das mudanças dos tempos, a morte de um estilo de vida. Conversávamos sempre à porta de O Diário, onde fora a sua bela loja comercial. Certa tarde, vendo pessoas passando nas calçadas, ele me perguntou: “Filho, você percebeu que as pessoas não mais assobiam nas ruas?”

E, então, descobri que eu mesmo deixara de assobiar quando, pelas calçadas, caminhava sozinho. Era um jeito de ser dos moços, dos homens: assobiar baixinho músicas conhecidas, cantarolar, até mesmo conversar consigo mesmo. Andava-se mais lentamente. Havia interesse pelos que passavam e, ainda, existiam homens que, usando chapéus, descobriam as cabeças em sinal de respeito às senhoras que encontravam. O fato é que assobiar baixinho nas ruas podia ser tido, como meu pai observara, sinal de uma maneira de ser, de um jeito, de um estilo de viver.

Talvez, o que vou escrever seja outra de minhas bobagens, pois não mais caminho pelas ruas, pouco saio até mesmo de automóvel e não sei mais o que acontece nas praças públicas e, em especial, no jardim principal. Aliás, desse centro abandonado eu sei algo quando, por algum motivo, sou obrigado, à noite, a passar por lá. É um deserto de almas, uma preciosidade do povo entregue a drogados, a prostitutas e travestis. Parece-me, pelo menos para mim pessoalmente, uma profanação, pois os jardins da cidade eram como que o templo espiritual das pessoas, onde elas se reuniam, onde começavam e terminavam romances e amores. Travestis, em meu entender, não podem enquadrar-se como homossexuais no sentido de respeito que estes merecem, pois são, propositalmente, promotores de escândalos públicos, artistas de circos mambembes. Ou os atuais loucos da aldeia? O pudor público também morreu.

Pois é sobre os loucos da aldeia que eu pretendia escrever, não sabendo mais onde se encontram, se ainda existem. Eles, os loucos, eram parte do cotidiano, pessoas adoráveis que amávamos e que nos levavam a interrogações. O mais notável deles foi o célebre Nhô Lica, catador de pedras que ele transformava em brilhantes, meu louco preferido, a que chamei de Fernão Dias piracicabano, o mágico transformador de pedregulhos em diamantes. E o Espetete, cujas frases, incluindo palavrões, rimavam na carreira do “ete”, para seguir a lógica do cururu? “Dá um dinheirete pro espetete senão vô puxá seu cabelete…” E o formidável Júlio Bruhns, de cultura imensa, poliglota, com seus cacoetes e trejeitos, andando pelas ruas, fazendo adivinhações, prevendo e predizendo coisas? Fui companheiro de Júlio Bruhns em longas caminhadas pelas ruas da cidade em nossas madrugadas então serenas. Com ele, aprendi mais do que em qualquer livro ou em escola. Mas ele era, para muitos, apenas outro louco da aldeia.

Quando vejo essa multidão de travestis provocando passantes, estragando o olhar das pessoas com suas vulgaridades, lembro-me daquele que foi, com toda certeza, o pioneiro do estilo “gay” em Piracicaba: Zinho Muié, para nós, um dos poucos declarados “veados da aldeia”. Zinho Muié era querido pela população, homossexual declarado, afetado, mas respeitoso. Talvez, como ele, personagem pública semelhante seja apenas Madalena, que nunca mais vi. Zinho Muié, cabeleireiro e manicure, ia atender às famílias nas próprias casas. Lembro-me dele, fazendo as unhas de minha mãe e de minhas tias, contando causos, respeitoso, dando palpites nos penteados que elas deveriam usar. E, para consagrar o seu reinado, Zinho Muié era a figura mais exuberante nos desfiles dos cordões carnavalescos.

Por uma opção de recolhimento – que irei acentuar ainda mais – não posso dizer do cenário e da paisagem humana de nossas ruas. No entanto, com a poluição sonora de casas comerciais e de carros de propaganda, não haverá mais espaço para música alguma, muito menos para a suavidade de um assobio. E os loucos da aldeia não devem mais ter importância, pois eles próprios podem ter fugido dessa loucura maior, esse suicídio coletivo que se comete na opção pela barbárie, pela violência, pelo individualismo que cega e mata. Bom dia.

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