Banalidade do mal

Uma das grandes e mais sábias pensadoras do século passado foi Hanna Arendt. Diante dos horrores da II Grande Guerra – o holocausto, a matança indiscrimanada de judeus e de minorias – Arendt mergulhou profundamente no estudo da alma humana. E, no pós guerra, no julgamento do carrasco nazista Eichmann, ele escreveu o livro que celebrizou o seu estudo sobre o que chamou de “banalidade do mal”.

Arendt consegue mostrar que, nos mais horrendos crimes, o criminoso nem sempre é necessariamente cruel ou desatinado, apesar de sempre culpado. Ocorre que, dentro de determinados sistemas, pessoas agem com naturalidade, sem senso de moralidade, verdadeiros burocratas que buscam cumprir ordens com eficiência e competência. Adolph Eichmann – verdadeiro monstro pelos crimes que cometeu – declarava-se sinceramente inocente. E, por inacreditável pareça, ele não era sequer anti-semita. Dentro do sistema nazista, ele se orgulhava de sua capacidade de cumprir ordens. Dentro desse espírito, o mal era apenas banal. E os horrores resultaram dessa banalidade do mal.

Ora, não seria exatamente isso o que estamos presenciando em nossos tempos, em outros contextos e cenários? O crime organizado criou o seu sistema, com sua moralidade própria – se se pode dizer isso – e seu exército de cumpridores de ordens. O mundo contemporâneo – de tanto desleixar-se de seus princípios e valores – permitiu o surgimento, o crescimento, a explosão das mais absurdas tendências, teorias, filosofias que, na verdade, não passam de instrumentos para ter sucesso no universo maior, que foi esse montado e organizado pela economia de mercado. Quando o lucro, o ter, o possuir, o enriquecer-se materialmente se tornam objetivos principais a conseqüência é uma só: o vale tudo. Já não existiu um programa chamado “vale tudo por dinheiro”? Uma jovenzinha estúpida não colocou em leilão a sua virgindade? A chamada Lei de Gerson não propõe ser “preciso levar vantagem em tudo?”

A crise mundial não é de ordem econômica ou política. É de ordem moral, que nada tem a ver com moralismos baratos ou com puritanismos. A civilização tem uma ordem moral construída com as virtudes das sociedades e não com os seus vícios. Quando estes, os vícios, prevalecem e comandam, o resultado é exatamente a banalização do mal. E, ao acontecer, tenta-se dar solução aos efeitos, às conseqüências, sem a coragem e a lucidez para enfrentar as causas.

A violência e os assassínios diários dos bandidos no Estado de São Paulo – muitos deles tendo migrado do Rio, onde se impôs uma verdadeira “tolerância zero” – exigem uma resposta da sociedade muito mais séria, severa, inteligente e segura do que essas conversas fiadas trocadas entre autoridades e políticos. Eles discutem o sexo dos anjos, enquanto as mortes se multiplicam, os exércitos de bandidos se tornam mais fortes e o medo e a descrença abatem o povo. Banalizar o mal é decretar o suicídio da sociedade e das nações. Aconteceu na Alemanha e na Itália; já se repetiu na Argentina, no Chile e no Brasil. Na verdade, o mal apenas se banaliza diante do silêncio e da covardia dos bons. Bom dia.

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