Bandeira dos mil cansaços

Pelo andar da carruagem, levarei, também eu, uma bandeira para desfraldar e agitar nas esquinas da cidade. Ela será branca, sem nenhuma inscrição. E, de minha boca, não sairão gritos ou brados de protestos. Escaparão, dos lábios, sussurros, talvez uma inspiração mais funda. Ou expiração cansada. E o “confiteor”, a rendição final: “Cansei”. Pois, do pouco que cheguei a entender, não sobrou mais nada.

O jogo da vida ficou muito difícil, quase impossível de ser jogado. Houve um momento em que pareceu terem-se perdido as regras, um jogo sem regras. Foi, penso eu, equívoco acreditar-se nisso. Houve, na verdade, mudança de regras, de quase todas elas, num acordo silencioso e sutil, mas crescente. Viver tem sido o jogo dos espertos e dos malandros. A relação do lobo e do cordeiro escapou à fábula. É real. E o lobo vence.

Tenho visto, lido e ouvido pessoas – nos meios de comunicação, nos lares e até nos botequins – ridicularizando, quase que sistematicamente, o papa Bento XVI. É como se ele fosse um otário e não o chefe moral e espiritual de uma instituição com mais de dois mil anos. Eu mesmo, admito-o, já me vi perplexo, assustado, até mesmo irritado com pronunciamentos e decisões de quase todos os papas que vi assumirem o comando da Igreja.

Ora, o papa fala, escreve, divulga, decide como se quisesse intrometer-se em minha vida, na de minha família, de meus netos. Por exemplo: como ele quer que eu, como avô, ensine meu neto adolescente a não usar camisinha? E como devo dizer, a jovens, do valor da castidade, numa sociedade sexista, hedonista? E, irritado, me perguntava: que loucura é essa? Mas não pergunto mais.

E não pergunto por admitir, enfim, estar entre os omissos que, lentamente, deram espaço para a mudança das regras do jogo: sai a decência, entra a indecência; sai a honestidade, entra a desonestidade; sai a solidariedade, entra o individualismo; sai a lealdade, entra a esperteza; sai a família, entram as uniões rápidas, passageiras, descompromissadas e superficiais. E, aos poucos, sai a moral ocidental – que nos vem de um processo milenar, de princípios que se perdem na poeira do tempo, já existentes nas cavernas da humanidade – para entrar a moral do espetáculo.

Descobri que, enquanto ridicularizamos líderes espirituais, entronizamos um bando de medíocres que comandam programas de tevê. Descobri que – em relação a meus netos – não demonstrei indignações com a desagregação moral, com a desordem, com a perplexidade dos tempos. Pois descobri que eu também estive perplexo, tolamente aturdido, engolfado por maremotos de modismos, de mudanças que não eram verdadeiras. A novidade não significa, necessariamente, o novo. E, com toda certeza, minha geração – com receio de ser tachada de “careta” – aceitou modismos como se fossem transformações.

É o que estou querendo dizer, a bandeira que irei desfraldar na próxima esquina, bandeira branca de rendição: desisti de fazer papel de idiota, de ser controlado por técnicas novas de comunicação, de ser instrumentalizado por seitas e falsos profetas, desisti de ser tangido como gado e desisti de manipulações. Assim, desisto, também, de apenas ir sobrevivendo, quase esquecido de toda uma dignidade de viver. Desisti desse custo diário e tolo de tantos trombamentos físicos e morais, de viver aos sufocos e atropelos, levando socos no estômago, tapas nas orelhas, pancadas na nuca, no corpo e na alma. Quando não se agüenta mais, urge a decisão. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins)

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