Bênção do pão com mortadela

pictureDe quando em quando e antes que anoiteça, vou até a casa de meus amigos, os Soledade, aperto a campainha, grito: “Tem pão?” Pergunto por perguntar, pois o aroma de pão feito em casa se espalha pela vizinhança anunciando, toda tarde, que os negros velhos já prepararam o altar de nossa gula. Há mais de 100 anos, a família Soledade, agora a Elisa, pratica a feitiçaria de produzir o mais saboroso pão do mundo. Que, com mortadela, se transforma em banquete.

Ora, sabores de infância têm o poder de desencadear processos. E cheiros, também. Foi o sabor da “madeleine” que levou Proust a mergulhar em busca de seu tempo perdido, produzindo uma das monumentais obras literárias humanas. E o homem comum também se rende a cheiros e sabores da infância, como se, através deles, vasculhássemos o tempo, remexendo em desvãos aquietados da alma.

Não há ser humano sem suas lembranças. Nem sem seus sentimentos. Por isso, em olhar o mundo – e cheirá-lo, saboreá-lo, ouvi-lo, tocá-lo – com sentidos de criança, talvez, esteja um dos últimos refúgios de nossa humanidade.

Antes, eu nunca comera faisão. Quando me ofereceram a carne que faz as delícias de reis, ela nada me soube. Seu sabor pouco me disse, nem mesmo à gula. Prazeres, penso eu, precisam ter história, a familiaridade do já conhecido, do já sentido. Até mesmo no amor. O desconhecido, por mais novidades traga, passa rápido. Se fica, foi por ter-se tornado conhecido. Um naco de faisão – por mais saboroso – não tem, pelo menos para mim, a história de um pão com mortadela. Ou com ovo. Ou pão com banana.

A mortadela tem o dom de remeter-me ao passado, à infância. Dá-me prazer intenso, como se o sabor se misturasse a lembranças que deixaram saudade. Meu Deus, como éramos pobres! E como pobre era o mundo! Os poucos ricos estavam tão distantes que ninguém os conhecia. O mundo pertencia realmente aos pobres, como se eles já houvessem herdado a terra. Não sei como e quando perdemo-lo.

Eram as famílias pobres que ficavam às portas das casas, cadeiras postas nas calçadas, longas conversas da vizinhança. O guarda passava e era saudado. As ruas centrais das cidades eram do povo: o sorveteiro, o pasteleiro, a padaria, o tocador de realejo, a igreja e o vigário, o cinema, a quermesse, moças bonitas em bancos da praça, jovens “quadrando jardim”, os sábios que se reuniam na farmácia. E o entregador de leite, com carrocinha. E as “normalistas”, vestidas de azul e branco…

Havia uma dignidade majestática na pobreza, uma pobreza humanizada, absurdamente diferente da miséria brutal de agora, que rouba a dignidade das pessoas, esmagando e seqüestrando almas. Nas casinhas humildes mas altiva , tudo estava sob controle. O jantar era a sobra do almoço, à qual, com magia especial, juntava-se mortadela cortada em pedacinhos e refinada com molhos de tomate e manjericão. E, sendo servidos, ríamos como reis. Pois éramos reis, mesmo não o sabendo. E aquele era banquete real. Nenhuma iguaria do mundo valeria uma porção de arroz ou um pedaço de pão com mortadela.

De quando em quando, pois, busco o pão feito por meus amigos João e Elisa, negros risonhos, já de carapinha branca. Tem que ser antes do anoitecer. Pois, então – com o pão fumegando, perfume inebriante – passo na padaria, compro mortadela e vou à beira do rio. E lá fico, vendo o crepúsculo dourando as águas. Então, mordiscando pedaços de pão com mortadela, sinto-me como que embriagado de absinto. E vôo aos sabores da infância. Bom dia.

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