Bênção e bem-fazer

picture.aspxRecebi um e-mail sobre pais velhos e me lembrei de coisas. Foi há muito tempo. Era noite alta. Meus pais moravam num sobrado, no centro da cidade. O quarto deles dava para uma sacada de onde se podia ver ruas e telhados e casas. Em andanças noturnas, passei por lá e, então, vi minha mãe, protegida com agasalhos e roupão, fazendo gestos estranhos. Não percebi fossem sinais-da-cruz, mas eram. E ela os dirigia à esquerda, à direita, à frente.

Parei o carro, gritei para que ela me ouvisse, vi-a debruçar-se no peitoril da sacada, perguntei-lhe o que acontecera. Ela me respondeu: “Estou abençoando cada um de vocês. Todas as noites eu faço isso antes de dormir.” Ela desenhava o sinal-da-cruz em direção à casa de cada filho. Abençoava a família, a bênção de mãe. E os filhos, naqueles tempos, pediam essa bênção de mãe, a bênção de pai.

Quem abençoa bem-diz. Quem amaldiçoa maldiz. Bênção de pais é um bem-dizer para os filhos, como se Deus falasse através de seus gestos e palavras. A bênção é algo tão sagrado que quem a dá não pode mais tirá-la. Eis o mistério, outro: o homem abençoa e apenas Deus pode retirar a bênção concedida. A mãe sabe disso. Pai sabe. Até o lavrador dos campos, quando pede lhe seja abençoada a terra, vive a certeza de que a bênção humana tem origem divina. Abençoam-se os frutos, abençoam-se altares, abençoam-se a água, o pão, o óleo, o vinho. Pais abençoam os filhos. Em nome de Deus.

Nunca mais me esqueci daquela visão: minha mãe, à noite, na sacada, abençoando os filhos à distância, sua mão rasgando o ar em sinais-da-cruz, endereçados a cada ponto cardeal, como quem envia um beijo na ponta dos dedos, como pomba que sai de um para outro canto de telhado.Dei-me conta, então – com tremor como que atávico, como se fosse uma herança que se transmite – de que não apenas invoco bênçãos de pais que se foram, pai e mãe vigiando em algum ponto do infinito. Eu também bendigo, eu também abençôo. E meu pensamento viaja e meu coração viaja nele e vou até as funduras das nuvens onde Deus está descansando e lhe peço que abençoe meus filhos distantes. E viajo até a Carolina do Norte, ao Texas, a São Paulo, a Itu, a Brasília, viajo por Piracicaba, todas as noites, acho que todos os instantes do dia: “Deus os abençoe, filhos meus.”

Mas por que, quando estamos próximos uns dos outros, silenciamos diante da bênção? Por que filhos não mais pedem a bênção dos pais, o pedido com palavras, o pedido com gestos? E por que não abençoamos mais os filhos, aberta e declaradamente, aquela certeza absurda de que com um gesto e com palavras – “eu lhe dou a bênção, filho, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” – trazíamos Deus para dentro de casa, levando-O também pelos caminhos?

Vou falar a verdade, com o coração doído. Essas coisas me doem porque não sei quando e onde as perdi. Mas elas voltaram com força tão grande que me vejo quase agoniado, o desespero de querer acreditar em tudo outra vez, a crença generosa, a fé aconchegante, a certeza simples de que, como pai, eu podia falar a meus filhos em nome de Deus e que, em nome de meus filhos, Deus me ouvia. A bênção de um pai era a bênção do próprio Deus, pois dada em nome Dele. Agora, não sei mais. Ou ainda sei e estou fingindo.

Isso tudo me voltou ao coração, por ter visto, numa casa humilde, um filho adulto pedir a bênção de pai, um pai bendizendo o filho. O pedido e a bênção eram um bem-fazer. Tive saudade. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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