Carcará

O texto foi publicado em O Diário em 13 de setembro de 1979. E depois selecionado para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014.

Tínhamos apenas uma filha. Estávamos, minha mulher e eu, na pequena cozinha do meu primeiro lar, preparando a mamadeira da pequenina. De repente, uma voz saiu do televisor. Quase um grito, gutural, selvagem, mas envolvente. Olhamo-nos. Era Maria Bethânia, leoa vinda da Bahia, que agredia com seu “Carcará”. Senti ser imponente aquele grito rouco. Comentei: “Algo diferente vai acontecer nesse país”. Aconteceu. Surgia um fenômeno de comunicação, uma mulher estranha, agressiva e paradoxalmente terna, que rompia com o formalismo dos meios artísticos.

Hoje, fico feliz quando me lembro daquela primeira noite, porque nem sempre se pode captar o capítulo inicial da História. Bethânia empolgou São Paulo. Multidões lutam e brigam por um ingresso na sua apresentação no Tuca. Um delírio consistente, não a loucura de macacas-de-auditório. Gente que desejava, como imperativo cultural, ver e ouvir a mulher indefinível. Eu também lutei por um ingresso. Quando o tive nas mãos, foi como se tivesse encontrado um brilhante. E era. Jovens, adultos, velhos tomavam conta das ruas, repetindo a mesma guerra de todas as noites — atraídos por um imã. O imã é Bethânia.

Na batalha, fui um dos vencedores. Consegui vê-la. E ouvi-la. E devorá-la. E absorvê-la. Duas horas de agonia e de êxtase. Bethânia e a musicalização da voz do povo. Da voz da nação. Quando declama o poema de Drummond sobre a anistia, o seu é um grito que vale por todos os manifestos, que leva ao delírio, despertando ao mesmo tempo, sentimentos de brasilidade e de fraternidade universal. Ouçam, amigos: Bethânia é linda! Cabelos feios e desgrenhados, corpo feio e masculinizado, nariz feio e adunco — mas linda e fantástica em tudo o que deixa extravasar de dentro de si. Seus olhos se transformam em estrelas rebeldes; o corpo, serpente eletrizada; as mãos, uma agressão e uma carícia em cada gesto. Bethânia tem a força do átomo e a leveza das pombas.

Sua voz é um grito e um sussurro. Terna e agressiva. Sensual e recatada. Anjo e demônio. Amante e guerrilheira; Joana D’Arc e Santa Terezinha. Gutural, a voz agride, acaricia, envolve, comove. Canta com amor e com ódio. Diz de resignação e de inconformismo. Trágica e lírica. Quando termina, não há apoteoses e estrelismo. Chega-se ao fim com a naturalidade de quem respira.

Mas com a vontade de mais. Bethânia sai do palco com a mesma dignidade com que entra’ sabendo, certamente, que jamais conseguirá saciar o público que chora, ri, sofre ao mesmo tempo, é agradecido e acarinhado, arrebatado e amansado.

Venci: consegui ver e ouvir Bethânia. Confirmou-se, para mim, o que senti há muitos anos: algo muito importante aconteceu neste país e para este Bethânia não apenas canta para nós. Mas, também e especialmente, por nós. Minha única tristeza foi a de não ter conseguido beijar-lhe as mãos. Simplesmente para dizer-lhe um comovido agradecimento. E bom dia.

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