Bolsa-estupro

picture.aspxAdmito haver assuntos e questões para os quais me faltam coragem, decisão e entendimento para opinar. Cada qual surge como tabu,envolvendo o proibido, o interdito, como que o sagrado que, se o abordasse, eu o haveria de profanar. Entre tais questões, duas me angustiam e diante delas recuo, incapaz de me manifestar, de emitir opinião, de tomar partido: aborto e pena de morte. Estremeço diante desse outro “mysterium tremendum”, que envolve a vida humana.

Por isso e de minha parte, não consigo entender que, com tanta facilidade e bem estar, pessoas de qualquer nível cultural se atrevam a debates públicos na televisão, em palcos, em escolas e universidades para discutir o que envolve questões que, quase sempre, estão além do simplesmente racional. Ora, a razão não é a única ou a principal valor do ser humano, que se compõe de uma dignidade moral que antecede culturas e civilizações. Ainda estes dias, cientistas revelaram resultados iniciais de um exaustivo estudo em que descobriram que, até mesmo entre animais, há um instinto de solidariedade que se aproximas da moral humana. Isso significa que, de uma certa forma, estamos caminhando para o sentido inverso: animais com moralidade, homens sem moralidade alguma.

Nesses debates de curiosos ou de pretensiosos, camuflam-se realidades com o uso inadequado de palavras, por ignorância ou por má fé. Há que se distinguir aborto de feticídio: o aborto é espontâneo, a expulsão do feto apesar do desejo da mulher em dar continuidade à gravidez. Pouco há de tão doloroso e dramático na vida de uma mulher, quanto a perda do filho em gestação. Por outro lado, o aborto provocado é feticídio, a morte provocada. Logo, a diferença não é tão sutil como se pretende dar. E a decisão de matar o feto é sempre uma decisão de assassínio, não há como camuflar as palavras. Se, no feticídio, a autora ou autores ficam felizes ou infelizes, essa é outra questão. Na qual, também, não me meto.

Agora, correlacionando-se à questão do aborto, estamos presenciando outra maluquice no Congresso Nacional, onde um deputado evangélico – tomara que não pertença ao Conselho Diretor de alguma universidade pentecostal – propõe a criação do que já se denominou bolsa-estupro: mulher que engravidasse após ser estuprada teria uma pensão do governo, no valor de um salário mínimo, para manter o filho até os18 anos de idade. Segundo o deputado – que acha absolutamente normal e decente envolver o Congresso com visões religiosas – essa seria a vontade de Deus.

Quando, nos países mais civilizados do mundo, se colocam limites claros e cada vez mais definidos entre religião e republicanismo, o Brasil está transformando o fanatismo religioso de seitas e de alucinações pentecostais em instrumentos de decisão e de formação, seja nos poderes da República, seja em universidades e em meios de comunicação.

Evidentemente, o projeto de bolsa-estupro não irá além de sua bisonha apresentação, mas foi suficiente para ajudar a desmoralizar ainda mais o já desmoralizado Congresso Nacional. A menos que, algum outro deputado evangélico – também interpretando a vontade de Deus – venha a propor que o estuprador, por ser pai do fruto gerado, tenha direito à bolsa família. Cada grupo de fanáticos busca construir a sua república própria, destruindo a verdadeira. E o mesmo acontece em universidades, onde fanáticos destroem a universalidade para implantar visões medíocres de fé mercantilista. E por que não uma bolsa-estupro a professores e funcionários violentados moralmente na Unimep? Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

 

 

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