Cada bairro, uma cidade

Do pecado da omissão, desse jamais serei condenado. Pecados que cometi foram por ação, muitas vezes ação em demasia. Insisti em falar e gritar quando os fuzis impunham a mudez. O silêncio, muitas vezes o tive como estratégia e pequenino sinal de sabedoria. Não há que se confundir silêncio com mudez. O fato é que gritei muito, enquanto quase todos ficaram mudos ou silenciosos. De omissão, desse pecado, pois, não serei jamais condenado.

Sei que de nada adiantaram gritos para um pedido de reflexão sobre os destinos de Piracicaba, ameaçados deste a década de 1970. Conveniências de grupos, apetites ferozes, ganâncias vorazes acabaram vencendo. Piracicaba está à beira de perder, em definitivo, a sua identidade. Os últimos suspiros eu os ouvi, ainda recentemente, na heróica luta de alguns grupos, em defesa da cultura popular piracicabana, num debate no SESC. Eram heróis quase anônimos, sem apoio, sem amparo, sem solidariedade comunitária. Como eu, eles parecem acreditar que vale a pena, sim, dar murros em ponta de faca. Pois, um dia, a faca acaba por entortar. Se assim não for, pelo menos tentado foi.

Theo Crosby, um dos grandes arquitetos ingleses – e penso já ter-me referido a ele – alertou sobre o problema hoje chamado de mobilidade urbana, a maldição do tráfego e do trânsito. Sentenciou Crosby: “O tráfego não é importante. O que importa é como as pessoas vivem. Não faz sentido planejar para o tráfego sem planejar, ainda mais intensivamente, para as outras necessidades das pessoas.” O automóvel se tornou a vaca sagrada da vida moderna. Mas Henry Ford – o responsável por essa notável mas agora perigosa indústria – deixou o seu parecer há mais de 90 anos: “A cidade está condenada.”

Há uma cruel e amarga ironia – ou má intenção – nessa priorização por avenidas e pontes e rotatórias. Pois uma avenida serve para locomover pessoas e bens dos lugares onde estão para onde querem ir. Uma rua, porém, é para as pessoas que já estão onde querem estar. O ser humano, desde a pré-história, movimenta-se em busca de um lugar de repouso, onde ficar, onde estar, onde conviver, constituir família, estar em comunidade. Isso significa que os valores sociais, econômicos e estéticos são mais importantes do que viadutos e avenidas. Sem aqueles, estes servem apenas para o movimento desordenado.

Lamento-me pela identidade em vias de ir-se em definitivo. Já estamos fragmentados: em vez de uma cidade com unidade comum – a comunidade, comum-unidade – tornamo-nos um agrupamento de bairros. Cada bairro com sua história, com seus costumes, com seu estilo de vida, com sua identidade. Antes, isso aconteceu por exclusão: o bairro era o abrigo dos excluídos, dos despossuídos. Tivemos um Bairro dos Alemães – no Bairro Alto – para onde eles foram destinados por serem protestantes e viverem uma cultura diferenciada. Os tiroleses foram para Santana e Santa Olímpia, hoje comunidades com uma identidade sólida e, ironicamente, preservadora também da história piracicabana.

E, antes da chegada dos coreanos, muito antes, Piracicaba teve o bairro chamado Coréia, nas cercanias de Vila Cristina, Paulicéia. O apelido Coréia surgiu na década de 1950, quando da sangrenta e ainda não concluída guerra da Coréia, entre o Sul e o Norte. Aquele bairro era o espaço de violência, de bandidagens, de crimes, de mortes. Por analogia, passou a ser chamado de Coréia. Por voltas que o mundo dá, uma outra cidade está surgindo com a vinda da poderosa indústria automobilística. Será um novo bairro. E teremos, então, uma Nova Coréia, agora sem violências físicas, sem mortes, sem agressões, mas com poderio econômico. É um novo bairro. Que sua cultura possa contribuir para enriquecer a nossa. Nunca, porém, para tentar substituí-la. Há uma lei natural: o maior absorve o menor. Por mais poderosa que essa Nova Coréia seja, Piracicaba será maior do que ela. Apenas não sei com qual identidade.

Ou melhor: penso saber, de tanto querer. Vila Rezende é o último bastião dessa identidade piracicabana. Foi lá que a povoação começou, foi lá que se desenvolveu. E será lá onde Piracicaba continuará sendo. Pelo menos, é o que desejo. E que os céus inspirem os rezendinos. Bom dia.

1 comentário

  1. Delza Frare Chamma em 02/11/2012 às 10:29

    Só quero a partir desta frase de sua crônica, Cecílio – "Como eu, eles parecem acreditar que vale a pena, sim, dar murros em ponta de faca. Pois, um dia, a faca acaba por entortar. Se assim não for, pelo menos tentado foi."- acrescentar que, realmente, os registros da História vêm mostrando que são esses os responsáveis por pequenos avanços qualitativos, que por menores que sejam, um dia, no futuro, talvez, poderão dar orígem a uma nova ordem social, onde o humanismo volte a ser um valor existente e protegido por todos. A faca acaba, sim, por entortar.

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