Cães em shoppings, crianças nas ruas

picture (1)Gosto de cães e tive alguns deles ao longo da vida. Ainda hoje, recordo-me de Diana, cadela pastora que meu pai tratava como se fosse um dos filhos. Diana rolava comigo nos quintais, acordava-me pela manhã. Gosto de cães, mas desisti deles cansado de presenciar o sofrimento dos filhos quando eles se vão. Animais domésticos tornam-se parte da família. E é quando tudo complica. Pois não deixam de ser animais.

Valha por intróito, ainda outro, pois parece necessário, cada vez mais, dar explicações sobre o que se pensa. E, também, sobre o que se sente. Pois a rapidez de tudo, atropelos parecem confundir pessoas, anestesiá-las. Sem consciência crítica, não pode haver comunidade. Há povo sem idéias, sem reações, sem reflexão?

Por isso, antes que amigos ou sociedades protetoras de animais voltem a me incluir entre as pessoas que eles consideram cruéis e insensíveis, declaro solenemente: desde a Diana de meu pai, desde Lassie e Rin-tin-tin, cães sempre me fascinaram. Mas, desde minha infância, veterinários, amestradores ensinaram-me que animal é animal, gente é gente. Há quem se esqueça disso.

É óbvio o dever de proteger os animais, pois há que se respeitar a vida. Mas há que haver equilíbrio diante de uma digna escala ou hierarquia de valores. A prioridade há, ainda, que ser o ser humano que sofre violências e é desprotegido. Ou seria falso dizer que muitos animais são mais cuidados do que a multidão de crianças de favelas, de pais desempregados? Em sociedades sérias , qual a prioridade: bichos ou crianças?

Certa vez, vi, antes da meia-noite e nas proximidades do Pronto Socorro do Piracicamirim, um casal acenando desesperadamente para os motoristas. A mulher, com uma criança no colo. Ninguém parava. Eu também hesitei. Cuidamos de animais, humanos nos assustam. Mas o olhar desesperado daquela mãe, o rosto dolorido do homem em pânico atingiram-me o coração. A história era simples: a criança passara algumas horas no Pronto Socorro, tivera alta após as 23h30, não havia mais ônibus, o casal não tinha dinheiro para táxi. Não houve quem se dipusesse a pedir auxílio à Polícia, Bombeiros, emergência para a criança ser levada para casa, a alguns quilômetros de distância.

Ora, seria admirável se as pessoas entupissem, também, as páginas dos jornais contra a desumanidade em relação ao ser humano. É decente a defesa da proteção aos animais. Mas será indecente se uma sociedade se sensibilizar mais com bichos do que com humanos. Nenhum cão sai do veterinário e vai embora para casa a pé, de madrugada, sob o frio. Mas uma criança, saindo do Pronto Socorro, está exposta ao sereno e ao desamparo. Há algo errado em tudo isso. Ou enfermo.

A imagem desse desequilíbrio, sinto vê-la quando vagamundeio por shoppings de tantas cidades. Homens e mulheres, felizes, desfilam com cães de estimação, exibindo-os como se fossem troféus de sucesso na vida e diante do mundo. É a tragédia neoliberal: cães, passeando em shoppings; crianças, que deveriam estar em shoppings, soltas nas ruas. Deveria, pelo menos, dar em quê pensar. E bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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