Caju da Farmácia, Augusta da Padaria…

Acabei por cometer a indiscrição e, agora, que leve à breca. Mergulhei, sim, no que acredito ser os meus últimos trabalhos literários, pois “tempus fugit”… Não sou tolo o suficiente para acreditar que me sobram muitos anos de lucidez e de força de trabalho, especialmente esse afã de escrever – árduo, solitário, sofrido – a que me dedico. Dei-me o prazo de mais seis meses para me dedicar a tarefas que, hoje, me são secundárias. Pois, então, completando 70 anos, tomei a decisão final: dedicarei todos os meus dias e noites, horas e minutos, ao fascínio de escrever, esse delírio que atormenta escrevinhadores até mesmo dormindo.

Pois bem. Deixei escapar estar escrevendo os que poderão ser meus últimos livros, pois demandarão tempo, todo o tempo que me restar, uma empreitada audaciosa que passei a chamar de proustiana. Não que esteja em busca do tempo perdido, mas impulsionado por uma força incontrolável para contar o tempo vivido, o tempo que abalou o mundo em todos os alicerces. E meus personagens, entrelaçando-se, haverão de contá-lo em histórias que terão encontros e desencontros, alcançando gerações. É um projeto pretensioso, mas já está elaborado, ao lado de um sonho final, o de escrever uma história iconográfica de Piracicaba, com fotos e postais colhidos ao longo da vida.

Na verdade, ainda que homem de memória, não sou daqueles presos ao passado, um saudosista no sentido pejorativo. Nem conservantista, o que confunde antigo com velho. Saudade tem-se do que foi bom, que é a vontade de outra vez. E o que foi bom continua sendo, razão porque deve ser conservado. Alimentos conservam-se, remédios conservam-se, amizades conservam-se. E o passado, no que teve de grandioso e belo, há que ser conservado como referencial para o agora. Só existe o passado. Futuro não existe e, se acontecer, será presente. E presente é uma construção. Eis, pois, a tolice que muitos pais e mães cometem, quando se propõem a “construir o futuro dos filhos”. Isso é impossível. O que se constrói é o agora e este, a partir do bom, do melhor, do decente que houve na história.

Digo-o, hoje, sem um mínimo de ranço, de tristeza ou de mágoa: nada tenho mais a ver com o tempo, os costumes, os vícios e as estruturas falidas que aí estão. Meu dever, pelo privilégio que tive de tanto já ter vivido, é o de testemunhar, o de contar a história que vi, que vivi, que sei. Hoje, são tempos e espaços suicidas. As cidades não são mais lugares para ou de viver, mas de competições, de guerra, de desafios, de desencontros. Condomínios imitam cidades da Idade Média, cercados de muros e de fossos, como se, com isso, pudessem conter ou deter inimigos. Até podem, parcialmente. Mas bloqueiam amigos, criam distâncias, aumentam vazios.

Os céus haverão de me dar saúde e inteligência, imaginação e força para eu poder contar, nesse trabalho derradeiro, o que e como foram Piracicaba e os piracicabanos nesses tempos de transformações. Os personagens olharão o mundo a partir daqui, como sempre fizemos. O que aconteceu em Piracicaba quando caíram as bombas de Hiroshima e Nagazáki? E quando surgiu a minissaia? E a pílula anticonceptiva, que tranformações também trouxe para nós? Como mudaram as famílias? Por quê e como os Castro Neves, os Gonzaga, os Almeida Prado foram dando espaço e lugar aos Dedini, aos Ometto, aos Cury e Coury e, depois, estes a novas gerações de anônimos?

Quero contar de um tempo em que as crianças saíam livres pelas ruas, os meninos descalços, peitos nus; meninas, pulando amarelinha, cantando cantigas de roda. E era fácil identificar as pessoas, já que nem sobrenomes elas pareciam ter. Eram o Caju da Farmácia, o Dito Eletricista, a Augusta do Vosso Pão, o Joaquim da Casa Nelly, o Salim da Porta Larga, dona Alzira do Pão dos Pobres. E as pessoas iam ao Bar do Tanaka, ao Bar da Loura, à Casa da Ruth no meretrício, à Escola de Datilografia de Dona Rosinha, ao colégio dos padres, ao colégio das freiras, ao colégio dos protestantes. Conversava-se de política e de fofocagem nas farmácias, nas barbearias, nos bancos de jardim, na esquina do Banco do Brasil, à porta das igrejas depois da missa das 10h. Meu pai tinha um bar chamado Tufiniquim e o pessoal ia lá para comer o sanduíche de pernil do Tuffi ou o quibe de dona Amélia. E ventura máxima, honraria era receber, como mimo, uma pratada de quibe de dona Mariana Kraide. E pastéis do Mário Japonês.

Neguito, Júlio Bruhns, Nhô Lica, Zego, Neidona, Espetete, Dito Alfaiate, Caxambu do Mercado, um povo, nossa gente, nossa história, cruzando-se e entrecruzando-se, entre ódios e amores, conflitos e generosidades, mas com vida, vida sem fim, inesgotável, tão poderosa que não pode ficar apenas na saudade. Há que ser contada. E bom dia.

Deixe uma resposta