Carentes, não: miseráveis

O texto foi publicado no dia 11 de agosto de 1979 em O Diario e depois selecionando para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Foram os Vicentinos os que, pela primeira vez, atingiram em cheio a minha consciência social. Foram eles quem me fizeram sentir-me também responsável pela desigualdade entre os homens, pela brutalidade da injustiça, dos contrastes, pela distância abismal entre os que podem e os que nada podem.

Há muitos anos, fui procurado por um grupo deles. Eram homens que vinham em busca de auxílio. Fazia frio, chovia, era noite. Levaram-me a um bairro distante e miserável. Quase nada enxergávamos por causa da chuva. Descemos do automóvel e havia uma árvore alta e forte acima da encosta e, nela uma corda amarrada, que servia de apoio e sustentação para escorregarmos pela ribanceira, rolando pela lama sem, no entanto, nos afogarmos na enxurrada. Lá embaixo, no sopé, um barraco. Um homem aleijado, uma mulher tuberculosa, três crianças raquíticas, leucêmicas, assustadas como cobaias indefesas. Não quis acreditar no que vi. Pois eu jamais deparara com tal horror, a mais odiosa realidade diante dos olhos: a dignidade humana nivelada à infâmia de feras acuadas. Estavam trêmulos de frio e fome. As crianças é que sustentavam a família, com esmolas que pediam ou com os pequenos furtos que faziam. Mas tinham, os pequeninos, sido espantados pela polícia que os apanhara roubando leite e pão de casas em cujas portas havia leite e pão.

Lembro-me de ter escrito um artigo, “Ladrão de Leite”, e, por causa dele, ser denunciado pela “revolução redentora” como comunista e subversivo. No artigo, eu bendizia todas as criancinhas do mundo que roubavam leite dos que tinham e o jogavam fora, preferindo esbanjá-lo a dar as sobras aos que o pediam. Fui absolvido, mas a condenação moral continuou, porque as crianças também continuaram passando fome. E, naquela mesma noite chuvosa, eu me odiei. Odiei-me porque voltei para casa e encontrei minha primeira filha, então um pequeno bebê, protegida no seu berço, por cobertores quentes, dormindo o sono plácido das crianças amparadas. Por que tinha de ser ela, minha filha, uma privilegiada? Ou melhor: por que as demais crianças não tinham os mesmos direitos que haviam sido garantidos à minha filha, a segurança da mesma dignidade?

Lembro-me, agora, de tudo isso por causa desses malditos e sofisticados tecnocratas sociais que insistem em substituir a palavra miséria por carência. Falam, os estúpidos, de “menores carentes”. E eu digo de crianças miseráveis, mais próximas de animais que de pessoas humanas. Pois tenho visto e chorado: centenas e centenas delas, estendidas no chão, deitadas sob marquises, quase pisoteadas por pés insensíveis, cobertas apenas por folhas de jornal. E tenho tido ódio dos que passam e não param, dos que podem e não fazem, dos que têm e não dão.

Sinto-me ainda capaz de armar-me de um fuzil e saquear em nome de um minuto de justiça. Ah! Marisa, você que me escreveu aquela tão terna e generosa crônica. Você tem razão: apenas deixei cair a espada de Quixote. Apanho-a quando a alma me dói e o coração explode diante da injustiça. Continuo o idiota de sempre. Não mudei em nada. Ainda acredito em transformar o mundo. Bom dia.

1 comentário

  1. Eloah Margoni em 11/02/2019 às 22:43

    Maravilhoso Cecílio,
    Engajado, sensível, ” revolucionário ” como sempre.

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