Carona e almas vencidas
Admiro pessoas serenas. Mas não entendo a maioria delas. Acho que de inveja. Pois eu gostaria imensamente de ser um homem sereno, de conhecer a serenidade como um estado d’alma, um estilo de vida. E não consigo. As coisas me angustiam e não consigo conciliar angústia e serenidade. Quando tento, sinto-me traindo algo ou alguém, talvez traindo-me a mim mesmo. Talvez, seja um equívoco terrível – mas não consigo entender a serenidade ou a paz apenas de poucos. Seria como assistir a incêndios e somente deslumbrar-se com as chamas, esquecido da destruição de pessoas e coisas. Ou estar entre escombros e ruínas e não reagir.
Dizem que serenidade é luz, claridade, tranqüilidade, isenção de perturbações. Assim, homem sereno é o que tem paz e mansidão de espírito. Isso nada tem a ver comigo que, mesmo evitando, fico com a alma em turbilhão, açoitada por temporais que não passam. Mais angustiado ainda fico, quando sei que o epíteto de Júpiter era Sereno, o deus sereno. Mas que serenidade essa, a do “deus da luz”, se ele costumava lançar raios e trovões sobre os humanos? Talvez, serenidade seja apenas um estado passageiro ou que só existe se não houver pessoas infernizando a nossa paz interior, sei lá. Ora, se Júpiter, deus sereno e da luz, perde a paz, por que haverei, eu, mísero mortal, de ter serenidade diante do caos humano? Não consigo. E desisti de querer. Afinal de contas, serenidade deve ser, de alguma forma, um estado de morte, de ausência, de distanciamento. Pois apenas os mortos podem ficar serenos se e quando, ao lado deles, há miséria, fome, injustiça, dores e lágrimas alheias.
Minha geração não entende essa paz dos mortos. Eu, pelo menos, não a entendo. Tenho amigos que, cansados, passaram a fingir indiferença. Sofrem em silêncio, seus sonhos destruídos, o maravilhoso mundo solidário tão ardentemente desejado, vencido pela lei das selvas. E me pedem que eu me assossegue. E lhes digo que sossegar-me está entre os meus mais intensos desejos, mas não consigo. Não dá. Tenho vergonha do sossego. Sinto-me covarde, como um marido ou um pai haveria de se sentir canalha se, podendo reagir, nada fizesse diante da mulher ou da filha sendo estupradas. O mundo de nossos sonhos foi estuprado. Foi caindo, pedra por pedra. Mas a ferocidade desse novo deus, o “deus ex-machina”, o deus-mercado é insaciável. Ele não se contenta em se alimentar de corpos, quer almas e espírito. E devora – como se fossem nacos de carne ensanguentada – sentimentos, crenças, esperanças, valores, aquilo que o ser humano tem de mais belo e que é chispa do divino na carne: a sua capacidade de ser solidário, de estar no lugar do outro.
Penso nessas coisas por sentir-me derrotado. Sinto-me derrotado a cada vez que me nego a dar carona, a razão fria e calculista impedindo-me de ouvir o coração. E dar carona foi promessa que fiz ainda na minha juventude, quando tanto precisei de alguém que me acudisse em beira de estrada. Estudante, eu trabalhava em jornal, tomava ônibus às 5h. da manhã para chegar a Campinas, ficando na estrada à espera de alguma carona. Caminhoneiros paravam, até carroceiros paravam. E, certa manhã, um senhor idoso me viu, abriu a porta do carro, deu-me carona, contou: ele, quando jovenzinho, vivia de caronas. Assim, tornou-se médico. E, jurou que jamais haveria de recusar carona, especialmente a estudantes. E eu fiz o mesmo juramento, como se tivesse recebido uma herança de solidariedade pela qual tivesse que responder.
Dei muitas caronas. E tinha prazer de fazê-lo. Certa vez, à beira da estrada, vi um homem acenando desesperadamente, a filhinha nos braços. Era um sitiante. Precisava de carona para levar a filha a um hospital. Ela estava morrendo. Conseguimos chegar em tempo. E fiquei feliz por viver a aventura da solidariedade. Mas, ai de mim, ai de nós! – nessa sociedade idiota, pérfida, desumana que estamos construindo, que construímos. Fui derrotado, nem meu juramento de solidariedade sou capaz de cumprir. Pois não consigo mais dar caronas. Perdi a coragem. O mundo do mercado fez com que eu passasse a ter receio até mesmo de crianças que me acenam e pedem por caridade um pouco de atenção. Até crianças se tornaram inimigos meus. Vejo bandidos e criminosos e corruptos e monstros por onde quer que eu ande. Sou uma alma derrotada. As leis da economia me venceram.
Que ser humano sou eu?
* Publicada originalmente no Correio Popular em 19/4/2002