Carroção de boi e internet

Não me perguntem para que servia, além de suportar as cargas pesadas. O fato é que andei de carroção de boi. Foi lá em Pederneiras, na estação experimental dirigida por um tio meu, agrônomo. Crianças, andávamos por aqueles campos com os pés descalços, sem camisa, torsos nus. E saltávamos das árvores agarrados em cipós. Havia um riacho – local aprazível, muito parecido com a cachoeirinha escondida da ESALQ – sobre o qual nos atirávamos, imitando Tarzan, Jane e Sheeta. Hoje, dá para entender o poema alsaciano: “ a escola era franca e risonha.” Pena que não tive um “velho professor, as cãs, a barba branca…”

O fato é que andei de carroção de boi. O condutor deixava-se levar mansamente e eu, ao lado dele. Quando nos aproximávamos da porteira, lá me ia eu abri-la, feliz por dar passagem ao boi e ao carroção, mais feliz ao fechá-la ouvindo-a ranger. E escrevi com caneta de molhar a pena no tinteiro, em mimosas páginas de caderno infantil. E joguei bolinha de gude e futebol com bola de meia. E nadei em rio. E soltei pipas que meu pai me fazia. E brinquei de imitar Roy Rogers e o Zorro. E machuquei o pé com prego enferrujado. E saltei muros para ir à casa de amiguinhos. E andei de bonde. Mais importante ainda: ia à escola a pé, encontrando coleguinhas pelo caminho, fazendo algaravias. E, também, na adolescência, furtei litro de leite na porta de vizinhos, que o leite era entregue pelo leiteiro de madrugadinha, deixando o litro em cada porta.

Pois é. Estou querendo dizer que começo a achar estranho que, agora, eu me sinta feliz por não precisar sair de casa, quando, no passado, todo o sonho e aventura estavam em sair, em ir, em vencer distâncias, em vagamundear. Agora, a internet vence distâncias, ultrapassa espaços, derrota o tempo. Pago contas pela internet, recebo pela internet, faço compras, comunico-me, vejo pessoas queridas. Só não sinto o cheiro e nem apalpo, mas parece que o olfato e o tato não mais estão sendo necessários para as relações humanas. Aliás, nem ouvidos, pois ninguém quer ouvir. E nem boca, pois ninguém parece querer conversar. Bastam os olhos para enxergar uma tela qualquer, onde acontece a vida como se fosse um espetáculo, para o bem e para o mal.

Nessas coisas, nelas penso por descobrir um furgão que é uma sala de cortar cabelos. Basta telefonar, o homem vai até a porta de sua casa, entra-se no salão dele, corta-se o cabelo, mulher faz penteado e pintura, e lá se vai o salão embora. Aliás, se tiver garagem, o furgão pode entrar e nem preciso será pisar na calçada ou na rua. Não experimentei, mas o dono do furgão me explicou direitinho. Vejam, pois, que a casa é o ovo do homem. Ou a sua prisão.

No entanto, o mais formidável – que pouca gente analisou ou sobre isso refletiu – é que, na era das comunicações e da velocidade – o ser humano começa a fazer o seu retorno à caverna, como se, enfim, começasse a descobrir que a aldeia global é uma simples abstração. Ninguém mora no mundo, mas no seu pedacinho de chão. E, agora, começa a acontecer o que era antes: médico em casa, cabeleireiro em casa, compras levadas para casa, a pizza, o almoço, o jantar. Só há um problema: as multidões continuam indo e voltando, ficando no lar apenas algumas horas da noite, marido e mulher estressados, filhos enlouquecidos, os berros da tevê, as paredes finas dos apartamentos, o vizinho que não se conhece. É o eterno retorno. Mas diferente. E sem graça. Feliz, penso eu, quem foi privilegiado para estar em mundos tão diferentes, do carroção de boi ao homem querendo estar em Marte. Serve para deslumbrar. E é o que basta, num tempo e num mundo desencantados. Bom dia.

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