Celulares e contaminação
Quando vejo crianças com seus tablets, celulares, computadores, a facilidade com que os utilizam, sinto-me um idiota perfeito e acabado. E olha que tenho um jornal eletrônico, este que vosmecê nos dá a honra de ler. Meu primeiro computador, ganhei-o de meus filhos ainda nos 1980. Era um caixote, no qual se inseria um disco quase do tamanho de uma pizza para, então, nele se poder escrever. O caixote foi evoluindo, evoluindo até se transformar nesses objetos pequeninos que parecem mais uma caixinha de formidáveis surpresas.
Vou, pois, tentando acompanhar toda essa revolução eletrônica, essa era digital, as realidades virtuais. Esbarro, porém, no telefone celular. Tenho dois deles, ambos também dados por filhos. Nesse exato instante, se me perguntarem onde estão, eu não saberia responder. Mais ainda: não sei sequer o número deles. Há traumas insuperáveis que nos acompanham por toda a vida. Para mim, telefone é um deles. Não me refiro apenas a celulares. Qualquer telefone. Tanto que, onde quer que eu esteja, se ouço o tirim-tirim de um telefone, fico ansioso, a certeza de que será comigo. E de que trará, certamente, alguma notícia ruim.
Numa redação de jornal, o tilintar do telefone era como aviso de fogo para o corpo de bombeiros. Ninguém telefonava para dar boas notícias, convites agradáveis, especialmente nos anos da ditadura de triste memória. Eram queixas, protestos, reclamações, notícias, avisos de morte, de desastres, de acidentes, a qualquer hora do dia e da noite. Em minha mesa de trabalho, eu tinha dois aparelhos. E era comum ter que ouvir e falar nos dois ao mesmo tempo, um grudado na orelha direita, outro na esquerda. Certa vez, o velho e saudoso Romeu Italo Rípoli – que ficava sentado à minha frente, fazendo seu cigarrinho de palha e fumando – se assustou e me advertiu da loucura que eu estava fazendo: eu prendera os dois telefones com o queixo, falando em ambos, o cigarro na boca e escrevendo um editorial. Dei-me conta do absurdo e fiquei com pena de mim, da minha monumental burrice.
Lembrando-me do Rípoli, sei ter sido ele também um dos causadores de meu trauma, senão o principal. Ele dormia cedo, por volta das 20, 21 horas, e acordava as cinco horas, antes do amanhecer. Eu ia dormir cerca das três, quatro horas da madrugada, não raro quando já amanhecia. O Rípoli me telefonava quase que diariamente antes do amanhecer. Nem em casa eu tinha sossego. E cada tilintar de telefone fora de hora eu tinha certeza do que me esperava: notícias ruins, ameaças dos milicos da ditadura, de traficantes, da bandidagem política e o escambal. (Até hoje, não sei se é escambal ou escambau.)
Pouco saio de casa, mas, quando isso acontece, sinto-me um alienígena. Há uma contaminação de celulares, multidões de viciados que não se desgrudam de seus aparelhinhos: nos automóveis, nas lojas, nos consultórios médicos e odontológicos, em velórios, em bares e restaurantes, nas ruas. É como se o celular fosse ar, oxigênio, sem os quais não se respira e não se vive.
De quando em quando, minha mulher e eu saímos para petiscar algo, a cervejinha, o vinhozinho, a caipirinha. É o meu tempo de ver, ouvir, sentir esse alucinado mundo concreto, que nada tem de real, mas de fantasia dos tiranos.Então, onde quer que estejamos, lá estão, também, em cada mesa, pessoas atreladas a seus celulares. Misturam-se sons de televisão, de vozes aos celulares e, agora, conforme presenciei, o surgimento de um silêncio sepulcral de famílias e de namorados entre si mesmos. Na nossa última escapada, fomos, minha mulher e eu, a uma mesinha do fundo do restaurante, quase escondidinha, para podermos conversar ao sabor da cervejinha. Então, um casal já maduro e a filha trintona sentaram-se quase ao lado. O garçom atendeu, eles viram o cardápio, fizeram o pedido. E, imediatamente, todos os três colocaram seus celulares na mesa e começaram a procurar sei lá eu que diabo de distração. Não se falavam, não se olhavam. O garçom trouxe os pratos, as bebidas e os três continuaram impávidos: comendo, bebendo e mexendo nos celulares. Nenhum falou nada. Logo em seguida, pediram a conta e foram-se embora.
Pelo que percebo, celulares são uma doença contagiosa que se pode tornar mortal. Celulares estão matando a arte e o dom da conversa pessoal dos humanos. A admirável tecnologia tem sido aproveitada para desumanizar o humano, que pena! Bom dia.