Céus e infernos
O futuro já é presente. Há coisas que espantam. Os meninos de agora não sabem como – mais admiráveis do que filmes de Spielberg ou de Kubrick – eram as maravilhas de um Flash Gordon ou de Júlio Verne. Pois brincar de tecnologia agora é muito mais fácil do que, como antes, inventar a partir de hipóteses, suposições, delírios. Basta imaginar que, em tempos de Lua com São Jorge, lá estava Flash Gordon atravessando os espaços, mundos, voando entre estrelas. E Júlio Verne fazendo a volta ao mundo em 80 dias… A imaginação humana é íntima do impossível.
Meu deslumbramento com a internet é tal qual presenciar um milagre a cada instante. É como se, de repente, espaço e tempo estivessem amalgamados. Essa questão de espaço-tempo já enlouqueceu muita gente. Basta ver aquela foto do Einstein com a língua de fora, os cabelos arrepiados… Ninguém fala, mas o homem, com sua teoria da relatividade, endoidou. Não há saída, pois a finitude humana só permite idealizar o infinito, imaginar o impossível, nossa mania de nos equiparar aos deuses. De qualquer maneira, a internet, pelo menos para mim, é essa forma de deslumbramento cotidiano. Algo amedrontador e que, por isso mesmo, não deveria induzir a muitas reflexões. Para não enlouquecer. Porque, pelo menos para mim, é enlouquecedor ficar pensando em arquivos que, de repente, se perdem, coisas que escrevi e que desapareceram. Para onde foram, para onde vão? Idéias, pensamentos, construções – para onde vão quando se perdem no computador? Prefiro não pensar. Para não endoidar.
Quando o primeiro contador de histórias inventou que um anjo passeava pelos céus e entrava na casa das pessoas, ele estava criando a internet. E quando um outro narrador inventou demônios com asas, estava também criando a internet. O anjo e o demônio primitivos conjugavam tempo e espaço. E quando Huxley falou do admirável mundo novo, quando Orwell previu o “Grande Irmão”, quando surgiram as viagens de Júlio Verne, até mesmo o Gato de Botas – toda essa imaginação criadora foi antevisão da internet. Que é a grande bênção para muitos, mas desgraça dolorosa para a maioria das pessoas. De repente, a internet confirma a lei das selvas, a do mais forte, uma lei de privilegiados. Quem estiver conectado, sobreviverá. Os outros ficarão à margem. Isso é trágico. Num continente ainda miserável como o nosso, a internet, produzindo maravilhas, é capaz de ser mortal como a peste que dizima multidões. Como sobreviverão os meninos das favelas, os marginalizados de periferias, se lhes forem negadas possibilidades de acesso a esse mundo novo? Isso é angustiante.
Dou-me conta de que, com a internet, pouco preciso sair de casa. O meu mundo ampliou-se e, ao mesmo tempo, se apequenou. Quase não vejo pessoas, mas as relações através de computador multiplicaram-se. Não preciso ir, elas não chegam – encontramo-nos no ar, sei lá onde. As pessoas pagam e recebem, compram e vendem, divertem-se, leem, vêem coisas notáveis e bobagens imensas, as relações se alteram, há até quem ame pela internet. São maravilhas e são horrores. Céus e infernos.E, então, ressurge a pergunta de todos os tempos, que ecoa através de milênios: “Para onde estamos indo?” E não há respostas.
Ouço a voz dos cínicos: não se faz omelete sem quebrar ovos; não se cria uma civilização sem vítimas. É de uma crueldade doída. Mas verdadeira. Bom dia.