Combo e merda

Simpons vs Família da PesadaPenso não precisar dizer de meus fascínio e paixão pelas palavras. Vivo delas, nelas, com elas, por elas, para elas. Estou certo de ter nascido assim. E, até hoje, não sei dizer se foi bênção ou penitência. Seja o que for, ainda são elas, as palavras, que me encantam e me seduzem, um mistério em cada dia, em cada hora. Minha mulher é testemunha: até dormindo, escrevo, meus dedos dedilhando o travesseiro. Bênção isso não é. Logo, admito possa ser  castigo.

Se nasci com essa paixão, foi, porém, meu tio João Hermann – pai do João, político, ambos falecidos – quem me deu o combustível a partir do qual as palavras se me tornaram como que um vício. Dele, ganhei meu primeiro dicionário, nos meus distantes 10 anos de idade. E um conselho que me acompanha a cada dia da vida: “Aprenda, todo dia, pelo menos três palavras novas. E, então, você poderá ser o escritor que quer ser.” Fi-lo anos e anos a fio. E, sempre que necessário, ainda o faço.

Admito ter-me tornado uma ilha, cercado de dicionários por todos os lados. Ai de quem tocar num deles sequer! Mais do que paixão, tornaram-se, todos eles, um vício, uma dependência de tal forma poderosa que não sei escrever a não ser no meu cantinho solitário, bem próximo das estantes onde estão os dicionários. Sem eles, sinto-me desprotegido, a insegurança diante do mistério das palavras.

Confesso, porém, estar, atualmente, em crise de linguagem. Há tantos estrangeirismos, tantas adaptações e readaptações que vou perdendo-me nos labirintos de linguagens novas. A palavra hilário, por exemplo. Passou-se, ainda recentemente, a dar-se-lhe o sentido de “hilariante, divertido”. Mas hilário era um órgão do corpo, coisa complicada para mim, relativo a vasos sanguíneos, fígado, sei lá. O hilariante sempre foi o hílare, não o hilário. E isso, descobri-o há uns trinta anos, lendo um livro admirável do Carlos Lacerda, “A Casa do meu avô”, onde ele usou a palavra. Não sabia do que se tratava, socorri-me de meus dicionários e achei: hílare é o mesmo que alegre, contente. Pois é. Isso é hílare ou hilário?

Algumas palavras eu não as encontro nos dicionários. Uma delas: meme, hoje tão usada. Isso é meme daquilo, aquilo é meme disso. E não sei do que se trata. E, agora, de tanto  o mundo inteiro falar em combo – sem, também, eu entender o que seja – acabei adquirindo o tal do combo: telefone, televisão, internet. Pensei fosse uma grande maravilha. Mas começou meu inferno pessoal: no combo, o telefone deixa de funcionar, a internet some, as imagens de televisão – em especial em filmes, sem os quais não vivo – desaparecem ou ficam paralisadas. E vem o pedido de desculpas: “Ops! Sem sinal.” Certa noite, não resisti e falei alto, para mim mesmo: “Esse combo é mesmo uma merda.”

Receoso, porém, de ser injusto, resolvi ir aos dicionários e saber o que, afinal de contas, significava a palavra combo. E achei, no português falado em Moçambique: ”calamidade, desastre.” Ora, todo o desastre, toda calamidade são mesmo e sempre uma merda. Então, não havia, eu, exagerado. Foi quando – para não ser injusto com a palavra merda – me lembrei que sua origem é latina, “merda, ae”. Da primeira declinação, como rosa, ae. Então, ficaria assim: “merda, merdae, merdae; merdam, merda, merda.” E o principal, o mais importante: a palavra – que, em latim, significa excremento – foi tornada pública seis séculos antes de Cristo, pelo genial pensador e poeta Horácio. Isso, segundo o “Magnum Lexicon Novissimum Latinum et Lusitanun”, de 1863.

Portanto, se foi usada pelo grande Horácio, é palavra poética para designar coisa não muito agradável. E o combo? Palavra misteriosa para designar uma grande porcaria, desastre e calamidade. Agora, pelo menos em relação ao meu combo, posso fazer um silogismo ainda que imperfeito, pouco importa: :

“Combo é um desastre: Todo desastre é uma merda: Logo, combo é uma merda.”

Com as bênçãos de Horácio. E bom dia.

2 comentários

  1. Joseane M. Gomes em 04/11/2013 às 12:52

    Seus textos são ótimos. Você. realmente é patrimônio cultural da cidade. Mesmo morando em outra localidade, estamos sempre acompanhando os seus textos aqui na Província e compartilhando com os amigos. Quanto ao “combo”, para que você tenha uma idéia, nem isso tem em minha cidade, Nova Odessa. O interessante é que os cabos passam por toda a cidade, alimentando Americana e Sumaré, que têm esses “ótimos combos”, mas aqui nada. Por isso, ainda somos escravos da velha e boa Telesp/Telefônica/Vivo, que carinhosamente chamo de Morto/Vivo. A fim de que você não se sinta sozinho em suas reclamações, o link q encaminho é sobre a minha via crucis com a “merda” da Morto/Vivo. Claro, não tenho o dom das palavras como você, mas minha indignação é a mesma. Um abraço.

    http://umasereiaaposentada.blogspot.com.br/2013/10/mortovivo-conectados-vivemos-melhor.html

  2. Mauricio Pavan em 04/11/2013 às 14:41

    Merda; Disse bem o amigo Cecilio Elias Netto e quero lembrar um outro poeta e jornalista autodidata que tinha mania de “ler”, o poeta americanense Antonio Zoppi que foi, durante muitos anos, o revisor do jornal O Liberal.

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