Comida de deuses

pictureCerta vez, ainda há poucos anos, comecei a escrever sobre pizza e culinária para divertir-me com políticos e juízes que amavam a censura. Não me deu problema algum. Comentar política não podia; ridicularizar políticos e magistrados podia. Mas comida é cultura e aprendi muita coisa. Por exemplo: as mais sofisticadas cortes ocidentais iam buscar inspiração na cozinha islâmica que, por sua vez, sempre foi culinária, digamos assim, esotérica. Há um livro – do qual nunca encontrei cópia ou exemplar – que revela essa fusão de ciência, magia e culinária.

Trata-se do “Picatrix”, do século XII. Há referências muito ricas em relação, por exemplo, a associações sensuais – em especial de sabores – com os planetas. Orientais não vivem sem essa sensualidade. Para eles, pimenta e gengibre relacionavam-se com Marte; cânfora e rosa com a Lua. Saturno é atraído por gostos desagradáveis; Júpiter, por amargos. E Vênus, como é de se prever, atraía-se por doces.

Um certo Abd al-Latif al-Baghdadi enfatizou a importância das amêndoas, do leite delas, água de rosas, extratos de flores perfumadas. E sua orientação para preparo de aves é abismante. Pombos, por exemplo, deviam ser fervidos em água de rosas sobre um leite de avelãs ou pistaches até que se coagulassem. No último momento, devia-se avivar os bichinhos com especiarias preciosas.

E um banquete preparado por al-Baghadadi? Nem ermitãos resistiriam. Paa ele, banquetes devem incluir três cordeiros assados, recheados com pedacinhos de carne frita em óleo de gergelim, com pistaches, pimenta, gengibre, cravos, mástica, coentro, cardamono e outras especiarias. Em seguida, borrifam-se com água de rosas impregnada com almíscar. Os espaços entre e ao redor dos cordeiros devem ser cobertos com cinqüenta aves e cinqüenta pássaros pequenos. Para que fiquem ainda melhor, recheiam-se com ovos ou carne e frios com suco de uva ou de limão. Depois, envolve-se a ave em massa, borrifando com água de rosas, assando até ficar “vermelho-rosado”. Gente requintada, esses meus ancestrais.

E os deuses nossos, das bandas de cá, deuses vindos da África? Roger Bastide deixou-nos o precioso “A cozinha dos deuses”, cultura africana na Bahia. Os deuses negros têm exigências. Segundo Bastide, pãezinhos brancos enrolados em folha de bananeira são os preferidos de Oxalá. Mas que não se lhe ponham sal e pimenta, pois, sendo deus de bondade, Oxalá gosta de doçuras. Oxum é faceira mas gulosa. Deve-se servir-lhe xinxim de galinha, que são os miúdos misturados com farinha de mandioca. Ogum gosta de guisados de carne de vaca. Para Xangô, o prato preferido é o amalá, feito com quiabos, camarão e óleo de dendê. Iansã gosta de caruru de arroz ou angu de mandioca com acarajés.

Alegrei-me ao saber que Omulu gosta de pipocas, pois isso prova que minha gula por elas são prazeres de deuses. Oxossi prefere achochô de milho e Oxunmaré, o gururu. E não é que descobri mais coisas? Gururu é igual ao guguru, que é o mesmo que doboru. Que são – gururu, guguru, doboru – realmente comida dos deuses: pipoca de milho igual à que se come diante da televisão ou nos cinemas, mas com azeite de dendê ou mel de abelha. Para ficar ainda melhor, o doboru – ou gururu ou guguru – pode ser guarnecido de coco em pedaços. Não é formidável?

Querem saber ? Gostei tanto de discorrer sobre pizza, comida dos deuses que acabei desejando que políticos e juízes me proibissem, em definitiva, de opinar sobre política. Mesmo porque, como dizia Paulo Francis, política é para quem não sabe fazer outra coisa. Bom dia.

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