Comida de mãe, cadê?

picture (2)Diz-se, acacianamente, dos loucos, que eles nunca sabem de sua própria loucura. Pode ser. Seríamos, no entanto, capazes de estabelecer diferenciações: loucura, lucidez, o que é quê? Todo o segredo talvez esteja na falta de coragem para entender o significado do lúcido. Pois lúcido é o que tem luz, luzes. Logo, lucidez é luz. E há luzes especiais. Santos, artistas, místicos, poetas, músicos, profetas, loucos – são e estão, eles, envoltos em sombras ou tomados por iluminações?

Há um conflito que me parece absurdo entre o simples e o complexo, o óbvio e o intrincado. Alguém enlouqueceu no sentido da ausência de luz, de claridade, de clarividência . Quem, quantos? Ou todos?

O preâmbulo – ou simples justificativa – é, apenas, para dizer de uma angústia que me fica, outra de tantas. Pois a loucura pode ser percebida pelo olfato. Mas narizes de cheirar, onde estão? Se quase não mais há olhos de ver e ouvidos de ouvir, como que também já desapareceram narizes de cheirar. E, no entanto, as coisas, o mundo, as pessoas têm cheiro. Logo, as casas, os lares também deveriam ter. Cheiro de casa, cadê?

A loucura beira a estupidez. A civilização começou quando, descobrindo o fogo, homens e mulheres passaram a conversar em volta de fogueiras, aguardando o cru tornar-se cozido. Junto ao fogo, inauguramos o diálogo, as conversas ao pé do fogão, o aconchego do lar, a lareira. Chamavam-se fogos, as casas do passado. Pois a vida girava em torno do fogão. Dele, vinha o calor. E os cheiros. De lenha queimada, de cinza, de feijão, da mandioca, cheiro de pão. E o perfume sensual do café da manhã. Cheiro de roupa lavada com sabão de pedra, lençóis recendendo a alfazema, lavanda e limão. E gavetas odorizadas com naftalina.

Cadê os quintais? E o cheiro de terra molhada de chuva, de jabuticabeiras floridas, de manacás? Um amigo me falou de sua saudade intensa: cheiro de estrume de vaca, em terra orvalhada pela manhã. Cheiro de goiaba caída do pé. Cheiro de mulher borrifada com água de colônia. E de menina tomando banho no rio. Cheiro de suor de menino brigando na esquina. E de pés sujos de barro.

Perdoem-me homens e mulheres que nunca se sentaram ao lado de um fogão, o calor do tijolo, a lenha estalando. Perdoem-me os que não sabem dessas coisas, da fogueira e do quintal, perdoem-me porque não irão entender. Pois tudo o que mais desejo, minha saudade, o de que mais anseio entre meus últimos desejos não passa de um mísero, pobrezinho, um quase caricato pão com ovo. Que, no entanto, teria que ser feito por minha mãe.

Era simples e eu a via fazê-lo como se fosse um banquete. E era: a frigideira, pouco de óleo ou colherinha de manteiga, o ovo quebrado, aquele ovo da galinha do quintal. E o chiado misterioso, o cru tornando-se cozido, sei lá eu. Sei, apenas, que minha mãe tirava a comida do quintal, da terra, do chão. E, no fogo do lar, ela como que pedia emprestado o ovo à galinha, na cumplicidade feminina, fritando-o para colocá-lo no pão de nossa eucaristia.

Pensei nessas coisas por medo, apenas por medo. A loucura assusta. Ouvi uma jovem mãe perguntar, à dona da escola de seus filhinhos, qual seria o lanche das crianças. Dói querer entender. Cadê o pão com ovo das crianças; o pão com ovo das crianças, cadê? Por que mães de agora não o fazem? Algo me diz de coisas morrendo, não me atrevo a dizer o que morre. Mas sei que morre. Fico com medo. E se, amanhã, não houver ninguém com saudade de um pão com ovo feito pela mãe? Como poderá haver filhos sem saudade de comida de mãe?

Enlouquecemos. Mas loucura , lucidez, o que é quê? Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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