Como se pagava o mico

Pagar MicoJá se ouvem candidatos falando em caixa de campanha política. Sempre foi assim. Nos últimos anos, com alguns escândalos em todos os partidos, a hipocrisia funcionou e o dinheiro arrecadado, caixa dois, apoios camuflados, tudo isso soou como se fosse novidade. Desde minha adolescência, acompanho campanhas políticas e nunca vi candidato dar recibo de apoio financeiro. Havia o chamado “livro de ouro” – que funcionava também para cordões carnavalescos – em que empresários, casas comerciais, amigos assinavam a lista de contribuição para campanha. Com o tempo, tudo se profissionalizou. Especialmente porque surgiram intermediários interessadíssimos em suas comissões.

Até hoje, confesso não saber se excesso de propaganda dá votos. De minha parte, sempre me desconsolei diante do que hoje se conhece como poluição visual, esse uso e abuso de promoções – não apenas eleitoral – pelas ruas, esquinas, muros, paredes, postes. Especialmente em postes. Pois até eles estão sem graça, testemunhas impassíveis de que se perderam a identidade, identificações das coisas. Postes já não são exclusividade da cachorrada.

Era bonito e pedagógico observar o respeito de um cachorro pelo xixi do outro. Um vinha, erguia a perninha, fazia xixi, demarcava o seu território. Os demais respeitavam e procuravam postes livres. Hoje, nada mais é definido, como se o mundo tendesse a convivências promíscuas. Acadêmicos deveriam estudar a promiscuidade nos postes, disputados por e divididos entre políticos, evangélicos, casas comerciais, sinais de trânsito, indicações de boates e até de randevus. São relações perigosas e podem dar boa pesquisa. Ainda que esquisita.

Mas não é esse o assunto. É que – já percebendo o início da propaganda eleitoral – voltei a lembrar-me de campanhas antigas, mais pobrezinhas, especialmente as do líder dos pobres, o saudoso Salgot Castillon. Nelas, havia sempre quem pagava o mico. Pois, há apenas duas ou três décadas é que surgiram “cabos eleitorais” remunerados. Antes, trabalhava-se por amor ao candidato e apenas um que outro entregador de papéis recebia uns tostões. A profissionalização dos “cabos”, arrisco-me a dizer, teve como pioneiros João Pacheco e Chaves e Lino Morganti. Suas campanhas eram milionárias. As de Salgot, pobrezinho, feitas com migalhas de seus fiéis seguidores. Mas Salgot tinha, além do amor do povo, o seu sumo sacerdote: Geraldo Carvalhaes Bastos.

Ora, não há inocentes em política. É um mundo de espertezas e de dissimulações. E Geraldo Bastos foi o mais inteligente, malandro e formidável de nossos estrategistas políticos. Se Maquiavel deixou discípulos, Geraldo foi o principal deles. De sagaz mentor de Bentão, tornou-se o Merlin de Salgot, o bruxo que conhecia o caminho das pedras. Salgot era coração; Geraldo, razão. Salgot, pai dos pobres; Geraldo, padrasto.

Lembro-me de já ter contado, mas repito, pois a vida é essa eterna repetição, “nada de novo sob o Sol.” O comitê dos “salgosistas” – um barracão onde funcionara a famosa Oficinas Vesúvio, dos Irmãos Furlan – era de um pobreza dolorosa: uma mesinha, duas cadeiras. Salgot chegava, sentava-se, o povo fazia fila, um por um ia – como se dizia – “confessar-se” com ele, desfiando pedidos: leite para os filhos, aluguel atrasado, luz e água cortados. Geraldo colocava duas moedas de dez centavos no bolso de Salgot. O eleitor chorava, soluçava, Salgot chorava e soluçava junto. Em seguida, punha as duas moedas na mesa: “Irmão, isso é tudo o que eu tenho. Você leva metade.” – e dava dez centavos. O eleitor, emocionado, exibia o dinheirinho, espalhava: “O homem é um santo.” Enquanto isso, Geraldo voltava a abastecer o bolso do “santo homem” com mais dez centavos. Para o próximo eleitor.

Um dia, um “cabo eleitoral” apareceu amargurado. Amava Salgot, era eleitor dele. Mas estava desempregado e o Pacheco e Chaves prometia pagar um bom dinheiro a quem distribuísse folhetos. Geraldo resolveu a crise moral do eleitor: “Tudo bem, filho. Vá lá, pegue o dinheiro do Pacheco, jogue o material dele no bueiro e distribua o nosso.” Pacheco pagava, Salgot faturava.

Com agências publicitárias e grandes financiadores de campanha – quase sempre empresários de olho em obras públicas – nem o Geraldo Bastos conseguiria ser mais esperto do que os tesoureiros de partidos. Que, aliás, são os que pagam o mico. Bom dia.

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