Compra e venda

Esse texto foi publicado em 10 de setembro de 1979 em O Diário. E depois selecionado para o livro Bom Dia: Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Ouvi o homem dizer à mulher que o acompanhava: “Vou ser bonzinho pra porque você está sendo boazinha pra mim,” Então, mais do que nunca, talvez, me dei conta do mercantilismo, do espírito negocista, do interesse de lucro que vigoram até mesmo nos nossos sentimentos pessoais. Dar algo em troca, amar, ser bom em troca de compra-e-venda, o lucro, fundamento do capitalismo, esmagando as emoções humanas. Até Deus – “Deus lhe pague”! – entra no comércio da generosidade. Ser bom apenas porque o outro foi bom. Agradar porque se foi agradado ou porque se deseja agrado. E o inverso é, também, correspondente: desamar porque se foi desamado, negar porque não se recebeu.

O terrível de tudo é que são reações e emoções tão naturais que parecem inconscientes, como se o egoísmo fosse congênito e não um fruto a mais das estruturas que condicionam e modificam o ser humano. De minha parte, recuso-me a acreditar que o homem é básica e intrinsecamente mau. Se o aceitasse, teria que admitir estar, o homem, na escala zoológica, abaixo dos irracionais que não têm inteligência, vontade e liberdade. O mau uso ou a má apreensão delas é que, talvez, estejam brutalizando-nos, permitindo, ao mesmo tempo, o surgimento de estruturas ainda mais cruéis.

A generosidade existe. O amor, também. Já os encontrei numa multidão de homens que, sintomática ou ironicamente, eram e são homens simples. Simples em sua pobreza e simples, também, em sua riqueza. Porque simplicidade e humildade não são privilégios dos que nada possuem. Há pobres soberbos, como há ricos humildes. Esse maniqueísmo — todos os pobres são bons, todos os ricos são maus — é que permite nossa noção de caridade se revista de influências também capitalistas, na insistência com que a exercemos, tentando dar coisas, fazer coisas, levar coisas.

A miséria material é, sim, degradante e indigna do ser humano. Há, porém, a miséria moral, essa que está matando, lentamente, milhares de homens que parecem ter tudo, mas que, na verdade, podem ser até mais carentes do que a maioria dos que nada possuem. Hoje, condoo-me muito mais do homem engravatado que, cercado de todo o conforto da tecnologia, morre de angústia, de insatisfação e de solidão. Os que sofrem da miséria material são, em tudo, iguais aos miseráveis morais. A diferença está em que estes são esquecidos, porque se revestem de lantejoulas. Porque possuem coisas e bens, o mundo se esquece de que as realidades materiais não preenchem vazios. Uma palavra amiga, um aperto de mão, um gesto de amizade — oferecidos a um milionário angustiado — podem valer tanto ou mais do que construir a casinha de alvenaria para quem mora num barraco.

Até os pregadores do púlpito deveriam — penso eu — meditar sobre isso. A caridade precisa deixar de ser um ato de filantropia pura e simples, caminhando ao lado da Justiça. O problema não está tanto no “não ter”. Está, acredito, no “não ser”. Tendo, o homem pode não ser. Sendo, o homem terá. E bom dia.

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