Concurso de bumbum

Esse texto foi publicado em 9 de agosto de 1979 em O Diário. E depois selecionado para o livro Bom Dia: Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Tenho tentado convencer-me de que, antes e culpados, nós, homens, somos vítimas. Pode ter alguma culpa quem tem a consciência deformada ou que se robotizar? Lembra-me sempre daquela jovenzinha que, diante dos equívocos dos homens, sempre nos dizia: “Deus deve estar coçando a cabeça, de tão perplexo„ E lá se vai o desfile de equívocos, de inconsciência, de insensibilidade. Li o grande equívoco da dignidade humana desfigurada. De tanto ceder nas coisas pequeninas, o homem acabou cedendo também nas grandes. Perde, quando pensa estar ganhando. E, quando acredita ter ganhado, nem sequer avalia quanto perdeu, A grande alegria está na renúncia, não na conquista. No dar e dar-se, nunca no receber. No amar, não no ser amado. Azar de quem pensa tratar-se de pieguice.

Outro equívoco, o maior de todos, revelador dos tempos. Foi numa reunião de jornalistas. De pessoas tidas como conscientes e esclarecidas, os ditos formadores da opinião publica, esse conceito também equivocado. De repente, um deles se voltou a uma jovem e bonita colega e perguntou “Por que você não participa do concurso de “traseiro” mais bonito? Vai ser sábado agora, na boate…” Os olhos da jovenzinha jornalista brilharam. Não se espantou diante do convite, pois a época espantou os espantos. Apenas perguntou: “Qual o prêmio?” E, ao saber que o “traseiro mais bonito” ganharia um televisor a cores, aceitou de pronto o convite. Foi aplaudida, estimulada, incentivada por todos os colegas. Levantou-se, desfilou, empinou o traseiro, colocando a retaguarda ao julgamento e à apreciação dos companheiros.

O silêncio, na verdade, tem eloquência. Percebi-o porque me silenciei e foi o meu silêncio que perturbou a jovem coleguinha. “Você é contra a ideia?” perguntou-me. Rindo uns, gargalhando outros, todos me olharam. Era, eu, o grande idiota ou eram, eles, os grandes tolos? Entusiasmada, a moça insistiu, Zombou: “Olha para mim. Você acha que não tenho chance de ganhar?” Riram mais ainda. Senti-os ridículos e, pior ainda, senti-me mais ridículo do que eles. Perguntei sobre o preço do televisor. Avaliaram-no em cerca de 15 mil cruzeiros, (NR: Moeda da época.) Fiz os cálculos rapidamente e sugeri à jovem coleguinha: “Se fizermos, aqui, uma coleta, com 500 cruzeiros de cada um compra o televisor sem precisar despir-se. Abro o jogo com mil cruzeiros

Não sei se a moça participou do concurso, colocando à mostra a retaguarda bem torneada. Talvez, pudesse até vencer o desumano desfile de gado. Não sei, repito, se ela participou. Só sei que voltou a sentar-se e emudecer. E os conscientes, cultos, esclarecidos e preparados coleguinhas, formadores dita opinião pública, mudaram rapidamente de assunto. Passaram a discutir a anistia. Caí no vazio, amargurado, a impressão de que o mundo se num açougue de carnes humanas. Ficou-me, porém, um consolo: a quase convicção absoluta de que, na vida, não há mais culpados. Sabemos todos, onde não há consciência não pode haver culpa. E bom dia.

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