Coração de caçador branco
É tal o patrulhamento que até o uso das palavras vai-se tornando difícil. Branco e negro, por exemplo. São palavras que, em certas áreas, despertam imediatas e exacerbadas reações ligadas a preconceitos raciais. Dizer que o “céu estava negro, sem estrelas” é perigoso. Pior ainda se se falar da “brancura sem manchas” da alma de uma criança. Mas as asas da graúna continuam negras e belas. E o assunto é outro.
De quando em quando, a televisão reprisa belos filmes. Um deles, baseado em novela inglesa, narra o enlouquecimento de um diretor de cinema na África. Diante do ambiente mágico, de sons e perfumes africanos, da plástica de um país exótico aos modelos europeus, os delírios envolveram o personagem. Sua obsessão: caçar um elefante, o maior que encontrasse. O homem branco violava, mais uma vez, o templo da vida, sacrários da natureza.
O filme narra, com maestria, o processo de enlouquecimento. E, quando a tragédia acontece, a pequena tribo africana passa a se comunicar por tambores. E eles rufavam as mesmas batidas, o mesmo ritmo, a linguagem monocórdia, como se ruflassem palavras. O que – pergunta o personagem – falam os tambores? Cabisbaixo, responde o intérprete: “Caçador branco, coração negro… Caçador branco, coração negro.”
Admito possam ser os meus olhos, enxergando fantasmas cada vez mais próximos, quase palpáveis. Mas, a cada dia que vejo, na tevê, o Presidente Obama mais me parece que ele está embranquecendo. Quando ele se revelava uma das “pombas” entre os políticos estadunidenses – um pacifista, postando-se contra os “falcões” guerreiros – a figura de Obama, pelo menos aos olhos deste tolo escrevinhador, era como a daqueles deuses pagãos, um Apolo de ébano. O presidente negro era uma garantia da sobrevivência da raça humana. E um exemplo para os caçadores brancos, semeadores de guerras, de preconceitos, conquistadores.
Devem ser os meus olhos, devem ser. Mas, a cada aparição, Barack Obama parece ir-se tornando cada vez mais branco. À medida que defende a guerra através de justificativas vãs – como ainda faz em relação ao Afeganistão, com suas bases militares na Colômbia – à medida que fala a linguagem dos conquistadores e caçadores, Obama vai embranquecendo. É como revelasse o grande segredo: a cor da pele vem da cabeça. Pensar como branco faz a pele embranquecer. O Apolo negro, pensando como Bush, fica com a cor de Bush. E de Hitler e de Stalin.
Pela hegemonia dos Estados Unidos, a chamada civilização ocidental cristã tornou-se, já há décadas, apenas o predomínio “wasp”: branca, anglo-saxônica, protestante. Os Estados Unidos conseguiram o impossível, sonho de Calvino que Weber esmiuçou: a ética capitalista ajeitando-se à ética cristã ou ao contrário. Moloch e Cristo unidos. A água e o óleo misturados. O reino dos céus e o reino da terra igualados. Isso é impossível ou alguém tem mentido: capitalistas ou cristãos?
Por destinação história, a Inglaterra tem sido parte dessa grande caçada branca. Povos vizinhos dela sempre a chamaram – por atrocidades e origens bárbaras – de a “Pérfida Albion”. Foi, apenas, outra caçada a gula pelo Iraque. Como de outras vezes. E as multidões, que saíram as ruas em todas as partes do mundo, são tribos impotentes rufando tambores e ruflando mensagens diante da sanha anglo-saxônica: “Caçador branco, coração negro…”
É triste ver Obama embranquecendo. E triste será ouvir povos brancos lamuriando-se: “caçador negro, coração branco.” É a vida. Bom dia.