Cuidar das crianças por egoísmo.
De quando em quando, pessoas estarrecidas me perguntam se consigo encontrar saída para a guerra civil que se instalou nas ruas, onde soldados e lutadores têm sido o exercito de crianças desamparadas. Confesso não saber qual a saída. Tenho tristezas imensas, especialmente a de ver que uma luta sem tréguas travada por tantos e tantos anos – onde me vi, quase sempre, como aquele cão bíblico que fica latindo, apenas latindo – resultou no pior. As coisas pioraram. Nos anos 60, denunciávamos a crise em que mergulhara a então incipiente “Casa do Bom Menino”, onde crianças sem eira nem beira começavam a aparecer e a viver como que num depósito humano. Já havia o problema, escandaloso como se fosse o berro de Jó, na sua solidão torturante, abandonado por Deus. As crianças tinham berros de Jó, lamentações de Jó. Sei lá em que se transformaram elas, então tão pequeninas e desprotegidas, mas depois, e com o passar dos anos, transformadas em pequenos exércitos que se tornaram ambulantes. Uma rebelião de crianças é como rebelião dos anjos: até os céus se transformam, até Deus fica acuado.
O suicídio coletivo foi tal que as pessoas passaram a temer crianças que andam pelas ruas, como se fossem inimigos a serem enfrentados, quando não dizimados. Quando se têm medo de crianças, repete-se o que aconteceu nos primórdios, um bem e um mal ao mesmo tempo. Foi assim com Herodes, que mandou matar tantas, mas não conseguiu matar todas. Uma que sobrou conseguiu transformar o mundo. De um mal, despontou um bem.
Ora, não sei que bem haveremos de tirar desse escândalo bíblico de uma geração perdida, de algumas gerações que já nasceram destinadas ao sofrimento e, o pior que tudo, a transformar a vida num gueto de misérias e de infelicidades. Acho que a última saída que nos resta é a do egoísmo, de um profundo e imenso e absolutamente doentio egoísmo. A solução que vejo está nesse egoísmo de cada um de nós. Pois temos que encontrar solução nem que seja por egoísmo, por pensar egoisticamente em nós mesmos.
Se tememos as crianças, que cuidemos delas por egoísmo, para que não nos atrapalhem; se temos medo delas como se fossem bandidos, tratemos delas, para que não nos assaltem ou não nos matem. Todas as razões humanitárias já foram desfiadas, arroladas. Nenhuma deu certo. Talvez, por egoísmo, por medo, por necessidade de segurança pessoal, talvez por aí as pessoas se dêem conta de que é preciso impedir a rebelião dos anjos. Se não for por fraternidade, por comodismo.