Dançando na vida

pictureOra, já não se fazem mais danças como antigamente, as de mão na mão, rosto no rosto. Bailes eram celebrações, linguagem de amor, antevéspera de sonhos. A dança é, talvez, a mais antiga manifestação dos sentimentos humanos. E, por isso mesmo, definida, por sábios, como “linguagem aquém da palavra”, comprovada pelas danças de cortejamento de pássaros. E, também, “linguagem para além da palavra”. Pois, quando não há mais como dizer as coisas do coração, o ser humano dança.

Mulheres, mesmo dizendo não saberem dançar, bailam. E bailam sozinhas e sem parceiros. Muitas parecem temer a magia da dança a dois, das mãos dadas, dos corpos próximos, da respiração ofegante, do pulsar emocionado do coração, das vísceras. Pois — num tempo em que a mulher foge à sua feminilidade e o homem não sabe mais da sua masculinidade — dançar é o retorno mágico ao primitivismo fantástico da vida, a festa do cortejo, a mulher deixando-se conduzir ao som das melodias, a parceria da confiança e da reciprocidade. Dançar a dois é entregar-se um ao outro. Ou promessa de entrega. Ou ensaio. Ou antevéspera de algo mais profundo e verdadeiro. É o instinto da vida.

Aos jovens, nega-se o direito de conhecer a dança como mistério e encantamento. Vive-se, agora, a dança tribal, o furor guerreiro, metais e tambores convocando a formas de competição, de desafio, de irracionalidade. Mas a dança de um casal é harmonia, um encontro tal que os antigos a compararam ao movimento fundante do próprio universo. Para os gregos, Pan era o criador e quem dirigia a dança dos deuses; dança e música formavam o movimento regulador do universo. Entre os hindus, Shiva é o dançarino cósmico que, com sua energia, desperta energias adormecidas. E Davi, amado por judeus e cristãos? A dança dele, diante da Arca, encantou seu povo e arrastou-o em turbilhões sem conto, como se criasse o princípio e, a partir daí, surgissem as danças sagradas.

A dança de homem e mulher, dança verdadeira — de entrega e de doação, de sedução a dois — é êxtase. E, portanto, uma forma de embriaguez, talvez a mais libertadora. Pois a dança é, também, libertação. Se, no Velho Testamento, a dança fazia parte das promessas de um próximo tempo de salvação, os cristãos primitivos temeram-na. Eles sabiam que homem e mulher — embevecidos pela dança — seriam, de alguma forma, íntimos dos deuses pagãos. Fala-se que João Crisóstomo — doutor e santo da Igreja dos primeiros séculos — condenava os movimentos corporais da dança: “o diabo está presente onde se dança.” Para alguns, ainda está…

Homens também alegam não saber dançar. Mas pulam, saltam, agitam-se, balançam-se em danças individuais. Por pesaroso seja, é compreensível: a dança a dois é muito mais do que um movimento de corpos ou um apoio de mão em outra mão. É — se verdadeira — comunhão.

São tempos de recusa a qualquer forma de comunhão, que é fusão sem egoísmos. Na dança, homem e mulher — desde tempos imemoriais — podem chegar como que a um estado de fusão, em movimentos que somam percepções estéticas, religiosas, eróticas, místicas,como em sonhos. É dom dos seres vivos e graça dos humanos. Observem-se as danças tribais e o encantamento do cortejo garrulante dos pássaros, nessa eterna “linguagem aquém da palavra”.

Se uma mulher tem receio de dançar com um homem — pois teme confiar em braços que a levam salão a dentro — como conseguirá, ela, estar, com esse mesmo homem, na grande dança da vida? Alguém, no baile do casal, tem que conduzir a dança. Bailar em separado é outra história. Bom dia.

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