Dar graças pelo caos

pictureVoltei a reler Lição de Abismo, de Gustavo Corção. E, também, Reflexões de um Espectador Culpado, de Thomas Merton, que anteviu a tragédia de nossos tempos. E mergulhei, em busca de âncora, também no Eclesiastes. Pois preciso de âncoras, tantos os temporais em alto mar, tantos os maremotos. Quando se brinca com vida, a outra face do brinquedo é a morte. Sociedades e civilizações também morrem.

Ora, é do caos que surge a luz. Desde as funduras dos tempos. Todas as culturas e civilizações acreditaram – até mesmo quando fingiram descrer – em um criador e na criação. E é do caos que tudo nasce, essa Grande Mãe e, também, mestra. Da escuridão, surge a luz. Está na alma humana: sombras e escuridão são tristeza e dor e luto; luz é vida, alegria, amor. Épocas sombrias, de decadência e decomposição, são prenúncios de novos tempos, de busca e procura de equilíbrios perdidos. De cada caos, surge o “Fiat lux”.

Antes do Natal, um amigo nos telefonou do riquíssimo resort onde descansava de sua milionária vida de trabalho. E provocou-nos: “Estou pensando em vocês, numa banheira de hidromassagem, bebericando champanha francês.” Irônico, completou: “Aproveito os últimos tempos, pois a festa acabou.”

A crise, mais do que financeiro-econômica, é moral. Criamos nosso próprio inferno que não foi apenas ético e religioso, mas também estético. Mergulhamos no sórdido, no materialista e, também, no feio. Cultuamos as deformidades, a vulgarização de tudo, a loucura do egoísmo que estimulou e gerou vazios, futilidades e perdas de sentido. A feiúra prosperou e pareceu impor-se. Mas o belo vence, pois o feio apenas existe por, antes dele, existir o belo. O culto à feiúra torna a vida tragicômica. E a tragicomédia se fez. O belo consegue converter o seu oposto, força esplêndida que submete a rebelião do feio. Quando isso acontece, surge o sorriso. No caos financeiro mundial, os reconhecimentos de culpa fazem despontar sorrisos de esperança.

Alinho-me entre os que saúdam esse final de tempo, a derrocada do fútil, o término de uma loucura coletiva suicida que teve antecedentes em todos os impérios anteriores, simbolizados por Babilônia, Sodoma, Gomorra, Roma. Consigo saudar a morte deste tempo pois o fim é, também, reinício.

Ora, somente não percebeu o caos quem evitou pensar ou observar. As lições fazem parte do cotidiano. A inexorável lei do movimento é, também, da própria vida: na medida em que se aproxima o fim, o movimento se torna mais veloz. A velocidade, pois, dos movimentos suicidas do luxo, do esbanjamento, da futilidade, das tolices – essa velocidade aumentava dia a dia. O individualismo e a ambição manifestaram-se até nos gestos mais simples, que se tornaram pérfidos e frívolos, refletidos em olhares turvos de ódios e cobiça, no apego à estética do feio. A velocidade da loucura anunciava a proximidade do fim. Que chegou.

Não construímos vidas sérias. A felicidade humana não implica tipo qualquer de existência, por mais divertida seja. Ela apenas existe em uma vida digna do homem, com valores humanos e, portanto, uma vida bela. E não se realiza individualmente, mas compartilhada e convivida com os demais. No caos a que nos atiramos, destruímos valores e princípios fundamentais, levando de roldão as noções de Deus, de família, de amor, de convivência, de solidariedade, de pátria. Que herança deixávamos a filhos e netos?

Na verdade, o caos simboliza a derrota do espírito humano, a confusão diante da anarquia e da decomposição de tudo. É a regressão do homem, uma forma de demência. Estávamos loucos. A derrocada financeira surge como luz. É uma nova oportunidade. Pelo menos, para nos lembrarmos que somos humanos. Sábios rendem graças. Bom dia.

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