De caçador a plantador

picture (56)Em pequena reforma no jardim, vi o pedreiro pisar nas plantas, as botas impiedosas esmagando o que lhe estava sob os pés. Ele sequer via por onde pisava. Comprovava-se o que me acontecera na tentativa de ter cães de estimação e jardins na mesma casa. Foi impossível. Eu plantava, os cães saltavam sobre os canteiros, pisavam nas plantas, destruindo folhas e flores. Cães e plantas não combinam. E alguns homens que fazem construção de tijolos e de cimento, também não. Para eles, o concreto é útil. E flores apenas embelezam e perfumam.

Aprendi a impossibilidade de ser caçador e plantador ao mesmo tempo, cuidar da caça e cuidar do plantio. Para o homem, a caça veio primeiro. Lá se foi ele, deixando a caverna, saindo para caçar. Enquanto isso, a mulher ficou, deixou a escuridão, deu alguns passos, viu a terra, aprendeu a plantar, a semear. Viu e aprendeu antes do homem. Pois são ventres da vida, terra e mulher. E, por isso, entendem-se e se tornam cúmplices. O homem, para aprender, usou do arado para penetrar o solo fértil, uma relação fálica, o plantar penetrando, não apenas um plantar aspergindo, semeando, sei lá.

Fico feliz vendo filhos meus agradarem-se desse meu tempo de apenas plantar, feliz por eles compreenderem não mais me importarem conquistas, competições, disputas, domínios. Tempos capitalistas e tempos de caverna e de caçadores são semelhantes demais: para comer ou para conquistar, para imperar ou para satisfazer-se, é preciso matar. Na caça, mata-se sem se cuidar que, dessas mortes, possam surgir vidas. A vitória terá que ser do caçador sempre: a caça abatida, a carne da presa, alguma vida destruída.

Na economia selvagem, o lucro nasce desse espírito feroz entre caça e caçador. Perde o caçado, vence o caçador. Não há harmonia possível entre uns e outros, entre caçados e caçadores, a não ser a harmonia do cativeiro, quando, poupando a vida da vítima, se lhe dá o direito de viver apenas conforme as regras do caçador. Caça é caça, caçador é caçador.

Comecei a acreditar que tempos de plantar possam ser, senão mais humanos, mais harmônicos. Plantando, o homem espera a terra reagir, como o sábio que aprende aguardando o tempo. Transforma-se, então, até a relação com a morte, com o fim das coisas. Pois, ao plantar, planta-se aquilo que vai se tornar comida ou que trará beleza, sabendo que a vida nascerá da morte da coisa plantada. Algo morre pelo outro sem ter sido assassinado, morte incruenta, um dar-se que traz uma beleza quase prosaica à tragédia do morrer. Na caça, mata-se o que se irá comer, deixa-se como carniça o que sobrou. Morta, sem se tornar alimento, a carne não haverá de renascer. As sementes do trigo e do milho morrem dentro da terra, como a semente do homem no ventre da mulher. Renascem em cada plantio.

Numa lenda antiga – não sei se polinésia, se dos druidas – o velho caçador já não mais conseguia ir à mata caçar. A família estava em perigo. Então, o netinho teve uma visão: um jovem bonito lhe aparecera pedindo para ser morto e enterrado num campo já preparado para ser seu túmulo. O menino negava-se a matá-lo. E a visão reaparecia. Certa noite, no sonho, o menino preparou a terra, matou o jovem bonito, enterrou-o no campo que se tornou sagrado. Alguns dias depois, a criança viu, deslumbrada, o trigo brotar da Terra, surgindo do chão onde o jovem do sonho fora enterrado.

O velho não mais precisou caçar para comer. Bastava plantar, era tempo de plantar. E o mundo mudou. Por que não? Bom dia.

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