De coração nas mãos
Apenas os tolos desconhecem a finitude humana. Não sou um deles. E, por isso mesmo, tenho consciência de estar próximo dos meus limites. O prazo de validade vai chegando ao fim. Filhos, amigos, parentes, conhecidos carinhosos insistem – com ternura notória – que me chegou a hora de descansar, pois – bem ou mal – a missão teria sido cumprida. Descansar, por quê? Se ainda há energia, lucidez, e uma agoniada capacidade de indignação que, agora, aumenta com a desolação?
O grande Proust – quando se recolheu a um quarto de hotel para escrever – viveu momentos de angústia mas recebeu a orientação de um de seus mentores intelectuais: “Escreva, enquanto tem luz.” Deixo-me – pequeno escrevinhador de província – animar-me disso. E percebo que, quanto mais a inconformação cresce, mais luzes se me acendem na alma, no espírito. O coração, porém, parece ficar nas mãos.
Peço a Deus – em cada momento de iluminação – que me dê tempo e saúde para concluir dois livros que desejo, ardentemente, entregar à minha terra. E que eu tenha sabedoria para saber encontrar inspiração, que existe para ser absorvida. Pois, finalmente, entendi o que seja inspiração: “Deus expira, o homem inspira”. Quem tiver a sabedoria de compreendê-lo terá encontrado um dos tesouros do caminho. Se houver inspiração, terá que haver trabalho. Como, então, descansar?
Na verdade, reflito sobre essas coisas porque – escrevendo sobre minha terra, tentando recuperar pérolas da memória e da história piracicabanas – luto para superar o profundo sentimento de desolação. Em mim, está viva, ainda, a Piracicaba histórica, culta, aprazível, pioneira, acolhedora. E é dela que estou escrevendo, essa “Noiva da Colina” apaixonante que foi conhecida, também, como Ateneo, Atenas Paulista, Florença Brasileira, Pérola dos Paulistas. Não suporto, porém, lembrar-me de qtemos sido considerados, nos 1970/80, a Amsterdã Paulista, paraíso de drogas e de desacertos. E, hoje, do que nos chamam?
Quando – ao escrever – digo estar com o coração nas mãos, sinto-me na condição de um filho junto ao leito de morte da mãe, vendo-a cada vez mais enferma, cada vez mais judiada. Ao medo que desapareça, surge, então, um paradoxal sentimento desesperado de esperança, levando a crer que ela resistirá. Mas como? Quando? Onde estão os que poderão devolver-lhe a vida, a beleza, os encantos?
Sei que pouco ou nada sei. Mas a vida me ensinou algumas coisas fundamentais. Com erros e acertos, com equívocos e ilusões, percebi, de repente, que a vida me dera aquilo a que chamam de experiência. No entanto, não sei para quê ou para quem ela serve. Serve-me a mim mesmo, mas já de nada adianta pois um mínimo de sabedoria me garante evitar erros e equívocos cometidos, e insistir nos acertos.
Escrevendo aqueles livros – também recolhido, mas, insisto, com o coração nas mãos – sinto horror a políticos e horror à inconsciência de grande parte de meu povo. Politicos e povo uniram-se numa grande farsa na qual não se pode culpar aquilo a que chamam de elites. Pois o grande, o maior, o mais grave problema de Piracicaba está no fato de não mais se saber onde elas estão, as elites. Elite é o que há de melhor, de mais preparado. Até os bandidos têm a sua elite, os melhores criminosos. Se há culpa na deterioração e degradação de Piracicaba, a culpa das elites é a de terem-se escondido. Ou desapareceram mesmo?
É hora, sim – e acredito nisso – de responsabilizarmos o povo, todo o povo. E, assim, deixar apenas de culpar políticos. Foi o povo que os escolheu, não pelo voto consciente, mas como quem está numa torcida de futebol. Ou num jogo de baralho. Por que ninguém se levantou, ninguém se ergueu, ninguém protestou quando um pastor evangélico – na eleição que levou o tucanato novamente à Prefeitura – revelou, a um jornal da cidade, que “fez um negócio com o deputado Thame e deu 50 mil votos de apoio ao candidato tucano”? A “notitia criminis” não chegou ao Ministério Público?
Fico, pois, com o coração nas mãos. Mas, nestes meus últimos tempos, ainda quero cantar a minha terra, quero contá-la. Roubo a Thiago de Mello as suas palavras: “Faz escuro, mas eu canto.” Por quê? Porque a manhã vai chegar. Bom dia.
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