De feiúras e de belezas

picture (17)Tão antiga é minha coleção da obra de Shakespeare que o nome do príncipe pensador, Hamlet, os editores aportuguesaram-no para um esquisito Hamleto. Doía-me nos ouvidos. Ainda dói. No entanto – seja Hamlet ou Hamleto – a tragédia permanece a mesma. Mas, desde o Eclesiastes, já se sabe: “Nada há de novo sob o sol”.

E o universo político, de Brasília, passando pelo Rio e São Paulo, espalhando-se pelas cidades? O queixume hamletiano persiste: “Há algo de podre no reino da Dinamarca”. Mas corrupção deixou de ser notícia, por corriqueira. Pois o corriqueiro não é notícia. Novidade é a virtude. Comentar podridões políticas dá monotonia, tão banal se tornou.

Do Hamlet, cita-se, quase sempre, o lamento sobre a podridão no reino da Dinamarca. Em mim, no entanto, comovem-me – como testemunho de sabedoria – as palavras do último suspiro: “O resto é silêncio.” O príncipe expira e Horácio deseja-lhe que os anjos, com seu canto, o acompanhem no repouso final. É melhor assim: silêncio e repouso.

Ora, não posso mais ser tolo de, ainda, lamentar-me das misérias de políticos e de homens públicos. Já vivi demais e, se pouco aprendi, sei da clássica constatação de Lord Acton: “O poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente”. Pois tenho um amigo pintor que me desvela belezas. Cada traço dele é obra de arte. Um rabisco de seu pincel realiza maravilhas. Ele e sua arte me espantam. Pois nunca sei se encontro – em cada traço, nas cores – a loucura santa, se a lucidez do gênio. Ou são, lucidez e loucura, apenas sinônimos?

Pelo milagre da internet, meu amigo envia-me desenhos, pinturas, imagens que lhe saem sei lá se da alma se do infinito, esvaindo-se-lhe pelos dedos. E me deslumbro. É alguém em estado de contemplação. E cada pequenina coisa se transforma em pérola rara. Uma nuvem do entardecer faz-se epifania. E um céu de estrelas, palpável de pegar-se com as mãos. Meu amigo – tenho certeza – enxerga a divindade. E se rende. Fico com inveja. Infinita.

Vendo sujeiras políticas e sendo íntimo de um artista, chego à conclusão que me parece definitiva: basta a beleza para redimir o ser humano. Não há felicidade sem o belo. A feiúra – como a da corrupção das cortes, a podridão do reino – infelicita pessoas, desnatura povos. Em tempos de tantas éticas, talvez preciso fosse buscar uma “ética da estética”. Pois é pela consagração do belo que se revelam o bem, o bom, o verdadeiro. Daí minha inveja do amigo artista, cuja alma entra em êxtase diante da vida. Ele conseguiu: purgando-se num deserto de aflições, rompeu o Nefando e viu o Inefável.

Em meio a tantas sujeiras, uma pintura de meu amigo encantou-me. Dos aparentes rabiscos, surgira uma jovem sem traços, o fascínio de feições indefinidas. Na fronte, a grinalda acho que de açucenas; o corpo, revelado pela transparência da túnica. Sandálias deixavam-lhe quase nus os pés. Nela, a ambigüidade feminina: a candidez virginal, a sensualidade de ninfa; virgem cristã e deusa pagã. De repente, pareceu-me vê-la no meu jardim, sob um caramanchão, como se aguardando o eleito. Até um colibri percebeu. Quisemos que ela fosse nossa.

E tive pena de alguns casamentos de tempos modernos, dilúvios de banalidades. Por que aboliram a beleza, a sensibilidade se – em todas as culturas e civilizações – há rituais inexcedíveis em delicadezas e encantamentos? O belo haverá de vencer a feiúra. Podridões políticas passarão ou continuarão. O belo e bom, porém, continuarão. O resto é silêncio. Bom dia.

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