De John Wayne a Papa

picture.aspxHá uma imagem de cinema que me acompanha. Sinto ser possível resgatá-la, ter certeza dela. Vejo – sob os céus de Roma – um homem, simbolizando o Cristo Crucificado, sendo levado por sobre a cidade. Ele vôa, amarrado ou pregado na cruz. Irá descer sobre Roma, como se fosse a resposta do humano sobre uma cidade que se considerava divina, sei lá. Preso à cruz, paira sobre Roma. Creio ser cena de Fellini, o início da “Dolce Vita”. Mas, fico em dúvida.

 

Vejo-me, então, no alto de uma mangueira, o lençol preso às costas. É uma capa, a minha capa. E, com ela, voarei pelos espaços infinitos. Meus pais, horrorizados, olham-me, pedem-me para descer, pensam que o meu é sonho de Ícaro e que, então, minhas asas de cera serão derretidas pelo Sol. Enxergam a minha queda antes mesmo de eu tentar o vôo. Mas não sou Ícaro. Sou o Super-Homem ou o Fantasma-Voador, não importa. Quero voar, subo em galhos mais ao alto. E vôo. E caio no chão, o sonho desfeito, o rosto machucado, sangue pelo corpo.

 

Mas há outra árvore, uma jaboticabeira. E um cipó. De uma árvore a outra, pendurado no cipó, lá me vou, o peito nu, a tanga, o grito com que chamo galos, galinhas, marrecos, fazendo de conta sejam tigres, elefantes, leões. Sou Tarzan, chamo Cidinha que me vê balouçando de lá para cá, extasiada. Nossa caverna é um porão. Dele, Cidinha e eu vemos o mundo. Temos seis anos. E eu lhe digo: “Me, Tarzan; you, Jane.” Somos felizes, os quintais são o nosso paraíso.

 

Então, o revólver de madeira, o cavalo de cabo de vassoura. Sei que sou John Wayne, mas me confundo e, de repente, transformo-me no Zorro e, em seguida, no Roy Rogers. Montado no cavalo de madeira cavalgo, vamos a galope, expulsamos bandidos. Grito meu grito de batalha: “aiô, Silver.” E me confundo entre heróis e cavalos, Durango Kid e Raider, o Duke de John Wayne, o Zorro, o Cavaleiro Solitário. Sou todos ao mesmo tempo. E nenhum.

 

Pois fui tantos e tantos, tantos fui que não consegui, penso eu, ser apenas um. Hoje, pensei em voltar a ser John Wayne e bater às portas da Casa Branca, chamando Bush para um duelo ao- por- do sol. A dor foi imensa: John Wayne era ele e eu, simples espectador, um expectante espectador. Daí, a cena e a imagem do homem-crucificado voando sobre Roma voltaram como num clarão daquelas aleluias antigas, do “rebentar d´aleluia”. Olhei e lá estava a imagem, lá voltara a cena: um homem voando, mas agora sobre os céus de Bagdá.

 

Descobri. Sou eu, agora como Papa. Estou velhinho, alquebrado, mas tomado de indignação, vivendo a cólera e a ira santas. E de um arrependimento doloroso. Vejo, entre nuvens de fumaça, Bagdá incendiada. Ouço gritos de mulheres e de crianças, soluços de mães, de viúvas, de órfãos.Como no filme, desço sobre Bagdá. Sou o Papa. Fui eu que destruí o Comunismo; eu que, em nome de Cristo, matei estruturas de nações comunistas. Fui eu que entreguei o mundo para os conglomerados internacionais. Pensei que o anti-Cristo vinha de Moscou. Não percebi que estava em Washington. Mas eu sou o Papa, preciso penitenciar-me. Eis-me aqui, pois, no centro de Bagdá, braços abertos, pronto para o sacrifício.

 

Olho para o alto, aperto o terço nas mãos, desafio Bush: “Se você for homem, jogue a bomba sobre mim, atinja meu peito.” O Papa deve, agora, enfrentar o capitalismo Se eu não conseguir, que Deus me perdoe pelo que, como Papa, andei fazendo. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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