De museus, cultura e seriedade

Cultura e política não se misturam. Quando ocorre, ganha a política, perde a cultura. E isso acontece em Piracicaba há décadas, agravando-se com governantes tidos como pragmáticos, objetivos, obreiros. Ora, cultura é um cultivo espiritual sério demais para ser deixado sob controle e ação de políticos, que, especialmente no Brasil, perderam a consciência da responsabilidade pública.

Tijolo por tijolo, semente por semente, Piracicaba foi construída, como cidade e comunidade, sob o signo da cultura. Não foi à toa ou por mera gentileza que passamos a ser conhecidos como O Ateneu, Atenas Paulista, Florença Brasileira, Pérola dos Paulistas. Há uma história heróica e dignificante que nos foi deixada por ancestrais, aos quais devemos honrar e cuja memória há que se preservar. Temos um patrimônio cultural que deu origem às nossas principais escolas, à ESALQ, a universidades, começando pelo pioneirismo, nas primeiras duas décadas do século 20, de Piracicaba criar a Universidade do Povo. Miguelzinho Dutra foi o criador, em Piracicaba, do primeiro museu do Brasil, o ornitológico. Fomos a cidade mais alfabetizada, a mais culta, a cidade das escolas, da pintura, da música, das artes, da literatura e poderíamos – como José Machado, quando prefeito, ousou sonhar – criar um panteão de nossos grandes mestres, sábios e artistas.

Ciência e desenvolvimento tecnológico fazem parte desse tesouro cultural admirável, o que nos colocou em lugar de destaque, no Brasil, no pioneirismo também da indústria e da agricultura. Piracicaba é especial. E poucas cidades, como nós, têm o direito, o dever e a responsabilidade de criar, fundar e manter museus. Mas não os de brincadeira ou com visões apenas de divulgação política ou de boas intenções. Museu é instituição por assim dizer sagrada, dada a origem da palavra, o sentido que se lhe deu e que ainda se deveria dar-lhe, de “templo das musas”, onde se preservam a cultura, a ciência, o conhecimento, a história.

Se cultura tem um signicado profundamente espiritual e de raízes de um povo, é preciso não confundi-la com “cultura de massas”, que determinou a industrialização dos espíritos, enfermidade do século 20, que se propaga ainda no século 21. Cultura é cultivar e cultuar, englobando o respeito antigo aos deuses e, também, a rememoração dos fundadores da vida, da história, das gerações, antepassados e, enfim, compromisso com o passado. Museu é esse espaço ainda mais sagrado da cultura, pois Museu é o nome, na origem grega, do filho ou do contemporâneo de Orfeu, o músico, de onde, como edifício e instituição, ter-se tornado o “lugar sede das musas”, o templo. No Museu, estão as musas, as nove, as que englobam o conhecimento e as artes humanos.

Piracicaba tem direito a museus sérios, dignificantes, honrados, como esse quase abandonado, mas digno, Museu Prudente de Moraes, como o Museu da ESALQ, como o que se pretendeu fazer com o Centro Cultural Martha Watts. Museu é empreendimento de vulto que exige não apenas recursos financeiros, mas a mobilização de um povo pela consciência de sua história e da história humana e, em especial, pessoas qualificadas para formá-lo, criá-lo, preservá-lo.

O poder público, partidário e político, não deve e nem pode ser gestor de obra com tal carga de humanismo, cultura e civilidade. E, propositalmente, colocamos na pauta os conceitos de civilização e cultura, que ainda desafiam expertos e intelectuais, as sutilezas entre as origens germânica e francesa. Foi por isso, pela grandeza e vastidão de uma obra magnificente, como um museu, que tomamos como piada de mau gosto o que o atual prefeito, quando candidato, prometeu. Ele, na primeira campanha, garantiu, , como se fosse um ziriguidum ou um happening, a desapropriação ou conquista do prédio onde hoje está instalado o Insituto Histórico e Geográfico. E, nele, abrigar-se-ia o que houvesse de atividade cultural em Piracicaba, obviamente no sentido de cultura de massa, rentável, comercializável, mercantilizada. Seria divertidíssimo ouvir palestras dos historiadores numa sala e ensaio de escola de samba em outra.

Quando, há alguns dias, a Ação Cultural propagou ter lançado a semente de um Museu de Imagem e do Som, houve quem pensasse tivesse sido brincadeira da titular daquela secretaria. Pois ela se envaideceu por doar 10 mil reais para prestigiar a idéia de um jovem radialista, abrigando dois milheiros de discos de música popular num espaço da Pinacoteca. Mas a Secretária não estava brincando. Ela falou a sério. Para ela e para a Prefeitura, museu parece ser um espaçozinho para guardar coisas, geralmente velhas, desinteressantes, uma espécie de depósito. Por falta de senso crítico da comunidade, que parece estar anestesiada, e de lideranças realmente sérias e preparadas, a mediocrização continua a minar os alicerces históricos e culturais de Piracicaba.

Insista-se, repita-se, martele-se: cultura é assunto sério demais para ser tratado por políticos. E Museu, um espaço historicamente sagrado para ser banalizado tão impunemente. Não podemos ter, como herança, a conclusão a que Luciano Guidotti chegou após visitar a Europa, museus, centros de cultura: “Lá só tem coisa velha. No Brasil é que é bom, onde tudo é moderno.” A nossa herança vem de umam singularíssima história cultural, de nossos ancestrais, bem antes de construtores apenas de avenidas e de pontes. Bom dia.

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