De pisar na grama a esquartejar

Foi na década dos 1920 que um imigrante italiano matou e esquartejou sua mulher num quarto de hotel de São Paulo, colocando os restos dentro de uma mala. Tornou-se o famoso – e espantoso – crime da mala, que assombrou gerações. Depois dele, vieram alguns outros, já com menos impacto. E, agora, um último, que impacta mais pela “mise-em-scène” dos meios eletrônicos do que pela tragédia ocorrida. Os tempos são outros.

Quando as coisas se banalizam, isso não acontece repentinamente. É um processo. E, notícias parecem repetidas, velhas, desinteressantes, já conhecidas. Mães jogando filhos recém-nascidos em lixeiras, pais matando filhos pequeninos, pessoas esquartejando outras, guerras indiscriminadas, estupros seqüenciais, roubos impunes, mentiras transformadas em verdades, atropelamentos cruéis no trânsito, mortes gratuitas…

A mulher que esquartejou o marido já ganhou os seus 15 minutos de fama e está fora do noticiário. Ela foi apenas mais uma. Fecharam-se as cortinas de um espetáculo para abrirem a outros que virão, apesar de também serem conhecidos, sem ineditismos. A tragédia, pois, não está no esquartejamento de um homem por sua mulher. Mas na banalização de um crime que, sendo bárbaro, se tornou quase que parte do cotidiano.

Iniciamos um processo de rebarbarização que teima em prosseguir. A caminhada civilizatória interrompeu-se. Crimes repetidos, que se vão transformando em hábitos, não acontecem por acaso. Refletem um tempo social, um momento da vida coletiva. De concessão em concessão, de indiferença em indiferença, de aceitação em aceitação, ruem-se todos os edifícios morais,sociais e psicológicos de um povo. O sagrado se perdeu. E, por isso, não há nem tempos e nem espaços sagrados. E as pessoas perderam, também, sua sacralidade. O ser humano voltou a ser um animal qualquer. E a construção de uma civilização ruiu em escombros. Tecnologia não é, por si mesma, civilização.

Os mais bem pagos mercenários do mundo – escolhidos para as guerras sem sentido, sem ideologia – eram os nepaleses. Eles eram preparados para ser guerreiros impiedosos, desalmados, insensíveis. Desde crianças, aprendiam a matar formigas, baratas. E,depois, gatos, ratos, cachorros. E bois, vacas. Até estarem anestesiados na alma para matar, sem culpa, pessoas humanas. Após matar o primeiro homem, o assassínio se transformava em hábito. A consciência humana não surge pronta, acabada, completa. Ela é também construída no dia a dia, na família, na escola, na sociedade, de onde surgiram os fundamentos da educação e da civilidade.

Não se pode dizer que toda pessoa que pisa na grama, em lugar proibido, é um esquartejador em potencial. Mas é quase certo que esquartejadores pisam na grama, jogam lixo nas ruas, papéis no chão, berram em recintos públicos, desrespeitam pessoas, ignoram direitos alheios, julgando-se, em seu individualismo doentio, senhores do universo. Pisar na grama é um ato de poder, de desobediência, de desafio, de menosprezo à lei e à coletividade. A partir daí, a pessoa dá-se, também, o direito de dirigir em alta velocidade, de trafegar na contramão, de estacionar em lugares não permitidos, de desrespeitar filas, de furtar, de trair, de roubar e, enfim, de matar.

Uma criança, na escola – quando desrespeita professores ou não reconhece a autoridade deles – dá o primeiro passo em direção à delinqüência. E pais que aplaudem essa barbaria são cúmplices do que vier a acontecer. Poluição, desastres ambientais, colapsos sociais, desvarios coletivos, perdas de identidade, infelicidade coletiva – nada disso aconteceu repentinamente. Foi um processo de decadência moral que ainda está em curso. Por isso, de minha parte, quando vejo alguém pisando na grama onde não é permitido, me acautelo: não estaria lá, um futuro ou próximo esquartejador?

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